sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Verdades saramaguianas

     Contra factos não há argumentos - aqueles estão à vista de todos; estes não têm ponta por onde se pegue.

   Na segunda divisão (vulgarmente designada capítulo) de Memorial do Convento, de José Saramago, têm normalmente os alunos que comentar a importância de um pensamento para a história narrada:

Montagem de fotografia (de Sónia  Vieira) com texto / pensamento (de José Saramago) 

     Talvez a tarefa seja incompleta, se não for feita a transposição para a realidade, para a condição destes tempos tão semelhantes aos literariamente representados. Se então (o do passado narrativo) era a farsa, o ridículo, "o descaro e a impiedade", agora (o presente vivido) é a máscara, o escárnio, a falta de credibilidade nas palavras e nos atos. São os pequenos a pagar as loucuras e a desfaçatez dos mais poderosos. É o popular comum a não poder escapar (mesmo que tenha sempre cumprido bem o seu papel e tenha confiado no propagado cruzamento de informações) ao que os grandes sempre fogem (na forma mais estratégica, simulada e perversa que qualquer um vê e sente como injusto).
     Voltando ao pensamento do narrador saramaguiano, é a maioria governante a mexer no bolso de quem trabalha... a ser o olho e a mão, sem cara nem pulso; ainda assim, a dominar no pior exemplo político, necessariamente não cuidando da maioria governada.
    Triste condição a de um país onde certos homens se posicionam como Deus(es), a escrever(em) torto (tortíssimo) em linhas que também, estando longe de ser direitas, dificultam a construção de qualquer sentido de ação.

      Depois venham dizer-me que a literatura é ficção. Por vezes é tão parecida com a realidade que só um cego é que não vê. Coitados de nós, que não aprendemos com a(s) história(s)!

domingo, 26 de outubro de 2014

Porque há siglas que podem ser acrónimos

      Regressa-se aos acrónimos, desta feita na sua distinção face às siglas.

      Há conceitos que, por mais que se queiram diferenciar, têm zonas de contacto. Os próprios estudos assim o demonstram, por mais que haja razões para os querer em campos opostos.

     Q: Caro colega, como classificar, quanto ao processo de formação, as palavras OIM (Organização Internacional para as Migrações) e SOS? Ambas as palavras se podem pronunciar como uma palavra só. 
         De acordo com o dicionário terminológico, e com os exemplos apresentados, surgiu-me a dúvida.
        "Acrónimo: Palavra formada através da junção de letras ou sílabas iniciais de um grupo de palavras, que se pronuncia como uma palavra só, respeitando, na generalidade, a estrutura silábica da língua."
      "Sigla: Palavra formada através da redução de um grupo de palavras às suas iniciais, as quais são pronunciadas de acordo com a designação de cada letra.".
        Aproveito a oportunidade para lhe dar os parabéns pelo Blog e agradecer os esclarecimentos, sempre tão claros.

         R: Caríssima colega, é com prazer que lhe respondo à dúvida, além de, desta forma, também poder agradecer as palavras simpáticas dirigidas à CARRUAGEM 23.
          Começando por citar Margarita Correia e Lúcia San Payo de Lemos (em Inovação Lexical em Português, ed. Colibri, APP, 2005, p. 46), é de sublinhar que "aquilo que distingue uma sigla de um acrónimo é apenas a sua concordância/não-concordância com a estrutura silábica da língua em causa. Uma unidade como ONU é uma sigla (porque é formada pela primeira letra de cada uma das palavras que constituem a designação — Organização das Nações Unidas), mas é também um acrónimo (porque a sua estrutura silábica é conforme à estrutura do português). Por seu turno, unidades como CGTP ou UGT (União Geral de Trabalhadores) apenas podem ser consideradas siglas."
            Neste alinhamento, é possível afirmar que a grande distinção prende-se com o seguinte: ´
. sempre que a palavra é formada apenas pelas iniciais de uma expressão, encontra-se a diferença entre sigla e acrónimo pela realização fónica, com o último a admitir uma realização silabada - o caso de TAP, NATO ou UNESCO, cuja leitura se faz na base de uma estrutura silábica e não por indicação letra a letra (cf. [TAP], [NA][TO] e [U][NES][CO]);
. é necessariamente um acrónimo toda a palavra que, já na sua formação, integra, total ou parcialmente, sílabas da expressão que lhe serve de base (exemplo de REFER, termo construído a partir das sílabas de 'REde FERroviária' Nacional).
        Atendendo aos casos concretos que solicita, assumo que, comummente, os falantes soletram cada uma das letras do 'SOS' (para se referirem ao sinal de emergência / perigo ou a situações críticas que requeiram intervenção urgente), nunca as lendo como se de uma sílaba se tratasse. Daí ser uma sigla. O mesmo sucede com OIM.

         Em síntese: entre a soletração da sigla e a silabificação do acrónimo fica a distinção de dois processos de formação irregular de palavras -  tão irregular quanto poderem coexistir os dois, atendendo à forma como os falantes pronunciam o termo em causa.

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Higiene a quanto obrigas...!

     Contactado por uma dúvida que, não sendo nova, ainda levanta questões por se considerar (talvez) da mesma fase o que sucede, morfologicamente, em momentos distintos.

   Q: Colega, diga-me, por favor, como classificaria a palavra 'anti-higiénico' quanto à sua formação. Obrigado.

      R: Caríssimo colega, trata-se de uma palavra que é formada a partir de 'higiénico' (base), a que se acrescenta um prefixo (anti). Daí tratar-se de uma palavra derivada por prefixação.
       Esta será a última etapa de formação.


    Uma outra questão é a que se prende com a formação de 'higiénico' (derivada por sufixação, a partir de 'higiene', com o sufixo adjetival 'ico'), anterior à palavra entretanto solicitada.

   Mais um caso, portanto, de processualidade morfológica sequencial, construída em fases diferentes.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Tempo deles...

       ... dos dióspiros, pois então.

O fruto da discórdia linguística (foto VO), com agradecimento à VS.
    E, antes que digam que é erro, convém alertar para o facto de a palavra estar bem escrita. DIÓSPIROS, sim senhor, com acento gráfico no primeiro 'o', é verdade.
   Verdade, verdadinha é que ninguém o diz tal como deve ser - que é como quem diz, tal como se escreve: a palavra é esdrúxula (assim o dita o dicionário), mas toda a gente a pronuncia como se fosse grave (com a sílaba tónica no 'pi'). Não é de admirar, portanto, que, por influência da fala (incorreta), também quase todos escrevam (erradamente) o termo, sem o acento gráfico que se impõe.
     Ainda hoje falei do caso aos meus alunos, até para que ganhem a noção de como a língua se encontra em mudança no estádio sincrónico em que nos encontramos, a ponto de atualmente já ninguém ter consciência de que deve escrever-se 'dióspiro' e não 'diospiro'; de que deve dizer-se a palavra como proparoxítona (acento fónico esdrúxulo) e não paroxítona (grave).
       
       Ofertaram-me seis dióspiros. Um (dióspiro) já foi! Quando acabarem (os dióspiros), posso comprar mais (dióspiros), mas vou preparar-me para falar de forma errada (não vá a vendedora pensar 'Olha, olha... Professor de Português e a falar tão mal). Ironias da evolução da língua (viva).

sábado, 18 de outubro de 2014

Uma divindade mística de felinidade

    É o que se pode dizer e escrever quando os gatos têm mais de sete vidas (para não falar de experiências e convívios muito recentes com outros "gatos").

     Não era meia-noite nem as ruas da cidade estavam vazias (ao contrário do que diz a famosa canção da gata Grizabella). Havia, contudo, o luar: o da noite e o do palco que recebiam o público, a chegar desde as 20:30. Pouco depois de uma hora de espera, anunciava-se o começo: apareciam figuras esculturais e felinas junto a uma lixeira, num musical de canto e dança só interrompido por um curto intervalo.
   Desde a estreia em 1981, no New London Theater (onde permaneceu em palco até 2002), muitos foram os países que assistiram a este espetáculo de Andrew Lloyd Webber com versos de T. S. Elliot, (na maioria, do Old Possum's Book of Practical Cats, da década de 30 do século XX; alguns outros mais que, não sendo de conhecimento público, foram integrados graças à cedência de vários textos pela viúva do escritor); milhões de espectadores se emocionaram com a magia da celebração da raça dos gatos Jellicle, bem como a escolha daquele que teria a hipótese de "renascer" para uma nova vida.
    Sugerido pelo poema "Rhapsody on a Windy Night", alguns dos versos de T. S. Elliot podem ser revistos na cantiga "Memory", cantada pela gata Grizabella:


     Também na memória fica este espetáculo, de luz, cor e muita gataria. No final, fechado o baile dos Jellicle, o velho gato da tribo (Old Deutoronomy) indica como os espectadores devem lidar com os seus companheiros (afinal, aqueles que também circularam pela plateia e assustaram os mais desprevenidos): eles são muito parecidos com os humanos, feitos de beldades (como a gata branca Victoria), de vilãos (como Macavity), de perfecionistas (como Skimbleshanks, o gato dos comboios), de nostálgicos (como Gus, o gato do Teatro), de artistas mágicos (como Mistoffelees), de preguiçosos (Jennyanydots, a gata Gumbie), de poderosos (gato Rumpus), de engatatões narcisistas (Rum Tum Tugger), de líderes sábios (Old Deutoronomy) e também dos que se afastam para mais tarde regressar (Grizabella).

      No meio de tanto gato - com cumplicidades, batalhas, bailes, alegrias e desapontamentos -, há vidas que se multiplicam numa lixeira que, podendo ser um tipo de mundo, sempre pode dar lugar a uma viagem com destino a um novo e universo; a uma nova oportunidade (Heaviside Layer). Nisso também os gatos ensinam os humanos, apelando para a dimensão da memória ("Memory").

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

És mulher...

     O dia foi intenso, na alegria que se cruza com a dor.

    É difícil aceitar o que a injustiça impõe. Mais uma razão para viver com a vontade de imaginar, ultrapassando os limites que nos prendem à condição de sofrer.


ÉS MULHER...

Disseram que não eras mais bebé,
com o amor de quem te vê mulher...
Tudo mudou. Ficou a mesma fé,
devoção de um grato pai que te quer

presente; de dois irmãos que te mimam;
de uma mãe que, chorando, te tem viva.
Estiveram os amigos que te estimam,
os familiares que te querem... Diga

o tempo o que disser, "Já és mulher!"
Estejas como estiveres, onde puder
ser, haverá anos a celebrar:

'Parabéns a você' há de soar,
contido - mas sentido -, por haver
mágoa pelo que te fizeram perder.


    Pessoa escreveu "quem dera / Volver a sê-lo!", pensando no que pudera ter sido. Noutros casos, diria que era bom volver ao que (já) se foi. Na impossibilidade, que se seja! Além de tudo, há sempre os que se acham de si partidos e que podem (re)descobrir a existência dos que são ou estão pelo que muitos querem. 

     Eis a prova da esperança do querer, misturado com a força do crer.

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Um filme deliciosamente português

      Depois de uma experiência fílmica dececionante, chegou o (inesperado) inverso.

    Assumo que, à partida, não entrei na sala de cinema com grandes expectativas. A companhia era excelente, mas o filme não me dizia muito, a julgar pelo trailer e pelo que se anunciava em termos temáticos: a angustiante perda (na e da vida) e o peso estagnante da solidão superados pelo encontro de uma idosa de 73 anos com um jovem de 18, com tudo o que de mais insólito se previa na relação.


     "Os Gatos Não Têm Vertigens", realizado por António-Pedro de Vasconcelos, aborda a força de uma amizade que salva vidas: a de um jovem com dificuldades, e desamparado na vida, mais a de uma triste viúva, que bruscamente perdeu a sua fonte de energia. Ambos enfrentam o dia-a-dia numa sociedade onde parece não haver tempo para nada e onde o dinheiro se tornou regra de ouro ou condição básica de sobrevivência. Uma nota de esperança surge quando, um pouco à semelhança de David Copperfield (de Charles Dickens), o espectador depara com um jovem que não se resigna e, depois de uma infância e adolescência difíceis, acaba por vencer na vida pela escrita, graças à ajuda recebida de um outro alguém que lhe deu de comer, o acolheu, o "leu", num encontro improvável e inesperado.
     Com argumento de Tiago Santos, as personagens Jó (João Jesus) e Rosa (Maria do Céu Guerra) precisam apenas de um terraço para construir um universo de afetos, capaz de ultrapassar o desencanto do rapaz e a história triste de quem acabou de perder subitamente o companheiro (Joaquim, interpretado por Nicolau Breyner) de uma vida, de uma existência pautada de lutas e resistências várias. Nas diferenças de cada personagem, há uma base comum: a clandestinidade do amor, que vai ser conjuntamente descoberta e cimentada pelos comportamentos, pelas confidências, pelos compromissos, pela linguagem e pela cumplicidade cómica (tantas vezes reproduzida num "És tão disparatado!"). Dela, também, Ana Moura dará conta, musicalmente, enquanto voz do tema principal da banda sonora:

Fado-canção "Clandestinos do Amor", da banda sonora do filme 
(interpretado por Ana Moura e escrito por António-Pedro de Vasconcelos)

CLANDESTINOS DO AMOR

Vivemos sempre sem pedir licença
cantávamos cantigas proibidas
Vencemos os apelos da descrença
que não deixaram mágoas nem feridas

Clandestinos do Amor, sábios e loucos
vivemos de promessas ao luar
Das noites que souberam sempre a pouco
sem saber o que havia para jantar

Mas enquanto olhares para mim eu sou eterna
estou viva enquanto ouvir a tua voz
Contigo não há frio nem inverno
e a música que ouvimos vem de nós

Vivemos sem saber o que era o perigo
de beijos e de cravos encarnados
Do calor do vinho e dos amigos
daquilo que para os outros é pecado

Tu sabias que eu vinha ter contigo
pegaste-me na mão para dançar
Como se acordasse um sonho antigo
nem a morte nos pode separar

Nós somos um instante no infinito
fragmento à deriva no Universo
O que somos não é para ser dito
o que sente não cabe num só verso

Enquanto olhares para mim eu sou eterna
estou viva enquanto ouvir a tua voz
Contigo não há frio nem inverno
e a música que ouvimos vem de nós


     Trata-se de uma bela película, a dar conta do desprendimento que uma idosa divertida (no espírito e na vida vivida) pode assumir, para se revelar e se sentir útil junto de um jovem marginalizado. Curiosamente, num filme com interpretações de grandes atores (Maria do Céu Guerra, Nicolau Breyner, Fernanda Serrano, Ricardo Carriço), há a revelação de um jovem ator (João Jesus) que se impõe entre os veteranos com a qualidade da continuidade. Todos jogam para uma história em que os jovens (gatos) arriscam, desafiam, "não têm vertigens"; também alguns idosos não as sentem, ora porque dão de comer "aos gatos" (no terraço) ora porque também procuram ter tempo, ter projetos, ser úteis ao mundo - depois do tanto por que lutaram e viveram.
     No cómico de situações e de linguagens apresentado, o espectador sai do filme com o bem-estar e a sensação de que o mundo pode ser melhor, porque feito de humanidade, de afetos e de possibilidades decorrentes de encontros felizes.

    Porque os bons são premiados e os maus da fita denunciados; porque pode haver justiça (nem que seja apenas na ficção); porque pode haver felicidade independentemente da idade e dos caminhos que nos fazem cruzar com tristezas e/ou com aparentes alegrias..., há filmes que, na seriedade do enredo, não perdem a leveza que nos faz sentir bem. Este é um deles.

domingo, 5 de outubro de 2014

Historinha para um dia grande

   Em dia de celebração republicana, falta o feriado, roubado pelo fim de semana (e não só!).

   "Eu nasci na República"... e não sei se sou mais feliz (mas reconheço que "assim penso tudo aquilo que sempre quis"). É que o povo anda muito desesperançado.
    Esta é a minha reação ao filme de animação de Emília Mimi (Primeiro episódio Mix República), datado de 2010 e exibido no "Monstra" - Festival de Animação de Lisboa. Fica a história para lembrar como a vida faz frequentemente esquecer o passado, nem sempre melhor do que o presente (por pior que este último seja):


   Implantada a República e erguida a nova bandeira, faz hoje 104 anos que nos despedimos da Monarquia enquanto regime político oficial nacional. Talvez tenhamos substituído alguns problemas por outros tantos (às vezes parecendo os mesmos), mas sempre fica a possibilidade de podermos chamar a nós o poder de escolha, de voto naqueles que vão ter a legitimidade de os (vir a) resolver.

     Vou apanhar sol e acreditar que "tudo vale a pena, quando a alma não é pequena" (só para citar o poeta).

sábado, 4 de outubro de 2014

Não é só a má qualidade de imagem...

       Demasiado mau para ser verdade.

     E assim o canal RTP nos vai habituando ao mau uso da língua, aquele que supostamente devia dar o exemplo até pelo "Bom Português" (também por vezes duvidoso) que vai divulgando ao telespectador logo pelas manhãs.
       Distorcida a imagem, deve esta ser reflexo tanto da dificuldade em ver o aumento (sUbida) do salário mínimo como do conhecimento distorcido da própria língua:

Sobe, sobe... salário, sobe, ... se ainda não SUbiu! (Foto VO)

       O pretérito perfeito mantém a regularidade gráfica da base verbal no infinitivo: 'sUbir'; daí 'sUbiu'. E, já agora, talvez não seja mau lembrar que, a partir do tema (radical e vogal temática) do pretérito, se formam o mais-que-perfeito simples do indicativo (sUbira, sUbiras, sUbira, sUbíramos, sUbíreis, sUbiram), o imperfeito mais o futuro do conjuntivo (respetivamente, sUbisse, sUbisses, sUbisse, sUbíssemos, sUbísseis, sUbissem e sUbir, sUbires, sUbir, sUbirmos, sUbirdes, sUbirem).

       Regularidades dos paradigmas flexionais (morfológicos) e ortográficos que a língua tem, mas que alguns responsáveis da comunicação desconhecem (devem ser influências a mais do "SObe, sObe, balão sObe" ou, então, a projeção de alguém que, falando à moda do 'Nuorte, só biu' uns parcos euros na carteira). Haja paciência!