sexta-feira, 31 de julho de 2009

Novos tempos...

Quando se respira o ar do mar, fica o...


DOCE EMBALO DO CANSAÇO

Ao compasso vivo da marejada,
largo as pegadas que a maré apaga.
Tomado um algáceo ar, renovada
é a alma ao aspirar ser vaga.

A par do areal que faz meu curso,
há um largo mar que um bote navega.
Abobadado Céu, na mente incurso,
escorre na cor que a ondulação encerra.

Neste solo baptizado por ondas,
embalado pela água celeste,
vejo-me camponês fazendo mondas
à Vida, apurada por sal que ateste

a fresca sombra que do sol acoite,
a luzente estrela que engane a noite.

Espinho
VO

... desejo de ser alga, vaga; de alcançar horizontes.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Do poder das imagens que a poesia tem

    É sempre bom saber que alguém vai entrando na "Carruagem 23": em estações ou apeadeiros, embarques, paragens, paradas,... não interessa... desde que participem na viagem e permitam muitas outras passagens. E a partilha, a que fico sempre grato.

     É neste espírito que transcrevo o teor de um mail que recupera a minha passada edição. Diz a Gabriela e bem: "A propósito do teu último post na Carruagem 23 lembrei-me deste vídeo, uma delícia!"
     Aqui está ele (o vídeo) ou ela (a delícia):


      Que dizer da "Poesia do Encontro", a não ser que a reflexão fabulosa de um Rubem Alves (relembrando Pessoa, Platão, Emily Dickinson) toca os poderes que a poesia tem: imagem, música, palavra(s), fantasia.     Encontros.
         Um encontro com Cecília Meireles:

Rei do mar

Muitas Velas. Muitos Remos.
Âncora é outro falar...
Tempo que navegaremos
não se pode calcular.
Vimos as Plêiades.
Vemos agora a Estrela Polar.
Muitas velas. Muitos remos.
Curta Vida. Longo Mar.

Por água brava ou serena
deixamos nosso cantar,
vendo a voz como é pequena
sobre o comprimento do ar.
Se alguém ouvir, temos pena:
só cantamos para o mar...

Nem tormenta nem tormento
nos poderia parar.
(Muitas velas. Muitos remos.
Âncora é outro falar...)
Andamos entre água e vento
procurando o Rei do Mar.

Cecília Meireles (1901-1964)

     Lugar ainda para a voz... e o olhar.
    Daí a citação e a sugestão de Dickinson: "Poética é a palavra que faz amor com o corpo. É uma palavra que vira corpo".

domingo, 12 de julho de 2009

Poesia feita canção ou canção em jeito de poesia

      Entre símbolos... 

      ... os da passagem (que é vento, que é sopro, que é tempo) e a temática da maturação no amor ("o vento sopra doido", "o que foi do / Corpo alado / nas asas do turbilhão", "Só meras brisas / Raras"), mais os da própria vida.


O SOPRO DO CORAÇÃO

Sim, o amor é vão
É certo e sabido
Mas então
(Porque não)
Porque sopra ao ouvido
O sopro do coração
Se o amor é vão
Mera dor mero gozo
Sorvedouro caprichoso
No sopro do coração
No sopro do coração

Mas nisto o vento sopra doido
E o que foi do
Corpo no turbilhão

Sopra doido
E o que foi do
Corpo alado
Nas asas do turbilhão
Nisto já nem de ar precisas
Só meras brisas
Raras

Corto em dois limão
Chego o ouvido
Ao frescor
Ao barulho
À acidez do mergulho
No sangue do coração
Pulsar em vão
É bem dele
É bem isso
E apesar disso eriça a pele

O sopro do coração
O sopro do coração
Sérgio Godinho
(letra para a canção interpretada pelos Clã,
CD-álbum Lustro, de 2000)

      Se o coração é vida e paixão, na poesia há tempo, razão, força e serenidade sempre com emoção e (re)criação..

      Ficam sempre as sensações, os sentidos do prazer vivido... a cultivar a imaginação.

sábado, 4 de julho de 2009

Quando a rainha deixa de ter "coroa"

     A necessidade de, na língua, coroar rainhas (com o que elas não podem ter) tem muito que se lhe diga...

    Não é incomum a presença de acento gráfico em palavras que não o têm. Entre as mais frequentes, encontram-se as ocorrências gráficas de 'juiz', 'campainha' e a 'rainha'. 
     Para todas, algum conhecimento da História da Língua bastaria para se dar conta de que, nos presentes casos, a grafia '-ui-' e '-ai-' é exemplo de sequências de vogais que não constituem ditongo. São exemplos de hiato, decorrente da queda intervocálica de [d], [n] e [g], respectivamente (judĭce-, campanīna-, regina).
    Casos de língua implicados na aprendizagem da gramática em articulação com a escrita (e a leitura), novamente com os media a não darem bom exemplo.

    Que suba Lance Armstrong, e que dê novas provas do seu heroísmo; mas que as dúvidas de alguns jornalistas não sejam muitas acerca da escrita da língua (apesar de na leitura oralizada sempre poder haver orientação intuitiva e até falaciosa). Qualquer dia, porque há quem diga que podemos escrever conforme falamos e porque lemos com acento - fónico - no 'i', ainda criam novo caso para o acordo ortográfico!

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Desafio linguístico: isto é predicativo?

     Não sendo questão nova, mantêm-se dúvidas (algumas com as quais me identifico), à espera de que se faça / construa alguma luz e certo de que esta tem de decorrer de estudo; também de pesquisa, de ensaio, de confronto, ... de tempo. Além disto, a vida também ensina que não há resposta para tudo... e cá vamos construindo estratégias de aproximação e de sobrevivência.


     Q: Que me dizes dos destacados? São predicativos do sujeito ou predicações?

i) O João está em Paris. / O médico está aqui.
ii) O João, muito doente, está em Paris.
iii) Esta tinta é para pintar a casa.
iv) A festa foi ontem.

    R: Algumas notas para algo que se tem vindo a tornar complicado:
(1) no plano semântico e da lógica proposicional, fala-se de 'predicações quando se atribui uma propriedade a uma entidade ou se estabelece uma relação entre entidades - nos exemplos dados, há predicações [estar em Paris], [estar aqui], [ser/estar muito doente], [ser para pintar a casa], [ser ontem] associadas a diferentes entidades;
(2) segundo, há que distinguir a terminologia do nível semântico-proposicional da de um outro que se prende com questões de natureza estritamente sintáctica (como as funções sintácticas, nomeadamente o predicativo do sujeito);
(3) terceiro,a questão da predicação, no domínio da lógica e da semântica, contempla segmentos proposicionais traduzíveis em funções sintácticas diversas;
(4) quarto, a predicação implicitada no segmento encaixado em ii - muito doente - é sintacticamente um modificador apositivo, explicativo ou não restritivo;
(5) quinto, a questão do predicativo do sujeito, no plano sintáctico, admite várias configurações: grupo adjectival (O João é inteligente), grupo nominal (O João é um crânio), grupo adverbial (O João está bem), grupo preposicional (O João está em êxtase);
(6) sexto, um caso que não é muito canónico é o que diz respeito a, por exemplo, 'O João está na escola' - 'na escola' é assumido por reputados estudiosos da sintaxe como um exemplo de predicativo do sujeito, argumentando-se com o critério sintáctico seguinte: um mesmo comportamento sintáctico determina a existência de uma mesma função, aferida por testes sintácticos comprovativos.
     Ora, assim sendo, na linha do que se lê em (6), teríamos:
a) O João continua doente.
b) O João continua no hospital.
c) Teste sintáctico da coordenação: O João continua doente e no hospital.
    Tudo muito bem: questão sintáctica, com testes sintácticos. Todavia, não tenho deixado de discutir muito este caso, ainda que reconheça que o teste sintáctico da coordenação seja sensível à classificação de predicativo do sujeito para os segmentos destacados.
     Eu não generalizaria este exercício a todas as ocorrências. Convoco, para estas últimas, a necessidade de uma interface entre a sintaxe e a semântica, particularmente no que diz respeito aos papéis temáticos assumidos pelos sujeitos / complementos / predicativos (à boa maneira integrativa da gramática de valências). Isto porque creio que o teste sintáctico não resulta tão eficaz em frases como 'A Maria está estudiosa e na praia' ou "A escola está ali e azul". Assinalaria estas coordenações, no mínimo, com uma interrogação, para marcar alguma estranheza (se não for mesmo pela agramaticalidade).
     Diria, por fim, que, à semelhança do verbo 'continuar' que nem sempre é copulativo (por exemplo, 'continuar um trabalho'), pode ser testada a hipótese de 'estar' e 'ser' admitirem realizações que se afastam da sua classificação prototípica. Nessa linha colocaria a realização 'ser para' proposta em iii), com o sentido de 'servir'.
       Didacticamente, considero assim relevante que, neste caso, se seleccione bem os exemplos a trabalhar, evitando cenários que se revelem demasiado complicados, porque não pacíficos ou implicando estratégias de manipulação / testagem ainda não acessíveis à consciência linguística ou ao processamento cognitivo dos alunos.

       Mais um exemplo para assumir a progressão da abordagem da gramática em função do critério de processamento cognitivo e dos mecanismos linguísticos implicados; não porque a tradição o determina. Como alguém já o disse "tradition is not what it used to be".

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Ponte de gente

       Das pontes muito se diz: há que fazer pontes, que muitas vezes estamos como o tolo no meio da ponte, que se vai ter uma ponte, que Setembro ou seca as fontes ou leva as pontes...

Há uma ponte, rumando ao desejo,
Feita de pontas geradas da terra;
Lança-se ao céu; mas, em pleno festejo,
Entrega-se à margem (nela se cerra).

Saída do chão, pede ao vento a mão
(traidor, por ela passa; causa dor);
do solo recebe dupla acessão
(convite à tenacidade do amor).

Imitando o sol, nascente e poente
(num vaivém que, por tempos, desampara),
Dele afastada, humilde, se sente:
fora da terra, o vento encontrara;
ansiara o céu; porém, assim que amara,
faz-se terrestre em entrega cadente.

É ponte fiel: liga-se ao que vira
no começo de tudo; ao que sentira,
regressa, num futuro que espira.

Uma ponte com duas margens sente…
Nelas se faz gente contra a torrente.
Espinho
VO

... Porque Espinho tem muito mar e é local para muitas pontes.