domingo, 31 de outubro de 2021

A ver se não caio... na perdição.

       Catorze anos depois, regresso à apresentação de um livro.

      Convite feito quando só havia título. Imediatamente aceite. Não podia ser de outra forma. Nem de profecia se tratava; apenas de confiança e amizade.
     Aconteceu ontem, com a publicação do novo romance do Manuel Maria. Dia 30 de outubro, ou melhor, 30 do 10, para se começar a compreender melhor a presença de tanto múltiplo de cinco: um título com cinco palavras (começado com "Quinto..."), vinte e cinco capítulos, cinco anos a separar a referência a uma carta de Vieira datada de 1658 (a abrir a história) e a citação de uma outra de 1663 (no final da narrativa), o quinto romance do autor... no ano de 2021 (cuja soma dos algarismos também dá cinco). A não ser coincidência, nem sei que diga! 
      Segundo o Tarot, é número de espiritualidade, de comunicação e comunhão, de evocação e descida do sagrado sobre o material; um aviso espiritual que deve encontrar eco no plano físico; um apelo para a libertação da matéria. Eis o mito do Quinto Império e o protagonismo de Vieira.

Da esquerda para a direita: o editor, o apresentador, o autor e o representante da Junta de Freguesia
 - Auditório Horácio Marçal, em Paranhos (Foto DG)

       Quinto império - Profecia de Perdição é romance para ler em tempos como os da atualidade, onde os valores de tolerância e respeito pela diferença, conquista de liberdade, fraternidade, afirmação de vontade e de amor, luta pelo bem são para firmar, no garante da própria dignificação humana.
        No exemplo que o protagonista dá e no percurso que faz, há as duas faces da moeda: a do ideal pelo qual pugna, mais a da negação a que o votam, na traição que perversamente constroem. De um lado, António Vieira; do outro, os que supostamente estariam consigo na cor, no pensamento e na missão, mas cuja fé foi mais movida por interesses e jogos de poder bem diferentes. No desconcerto e nas intrigas mundana(i)s destes últimos, resistiu o ideário congregador do autor da História do Futuro, feito da comunicação e comunhão que muitos não quiseram entender e destas se distanciaram.
       Nas caras e nas  máscaras descobre-se a utopia pretendida, apenas seguida pelos que têm espírito livre e convicção de princípios. Os que se regem pela vontade.
      Personagens de bem cruzam-se no(s) mar(es) da vida, sem  esquecer que nele(s) há ondas revoltas e naufrágios; tempestades a colocar em risco império(s) de humanidade. Entre o Brasil e Portugal, no seio de um tempo que convive com o sagrado e o profano, com a frivolidade e a afetação do teatro da vida, Vieira vive a defesa de um sonho que parece não ser o da sua terra nem o dos seus superiores:

   Quem havia de crer que em uma colónia chamada de portu-gueses se visse a Igreja sem obediência, as censuras sem temor, o sacerdócio sem respeito, e as pessoas e lugares sagrados sem imuni-dade? Quem havia de crer que houvessem de arrancar violentamente de seus claustros aos religiosos, e levá-los presos entre beleguins e espadas nuas pelas ruas públicas, e tê-los aferrolhados, e com guardas, até os desterrarem? Quem havia de crer que com a mesma violência e afronta lançassem de suas cristandades aos pregadores do Evangelho, com escândalo nunca imaginado dos antigos cristãos, sem pejo dos novamente convertidos, e à vista dos gentios atónitos e pasmados? Quem havia de crer que até aos mesmos párocos não perdoassem, e que chegassem aos despojos de suas igrejas, com interdito total do culto divino e uso de seus ministérios: as igrejas ermas, os batistérios fechados, os sacrários sem sacramento enfim, o mesmo Cristo privado de seus altares, e Deus de seus sacrifícios? Isto é o que lá se viu então: e que será hoje o que se vê, e o que se não vê. Não falo dos autores e executores destes sacrilégios, tantas vezes, e por tantos títulos excomungados, porque lá lhes ficam papas que os absolvam. Mas que será dos pobres e miseráveis Índios, que são a presa e os despojos de toda esta guerra? Que será dos cristãos? Que será dos catecúmenos? Que será dos gentios? Que será dos pais, das mulheres, dos filhos, e de todo o sexo e idade? Os vivos e sãos sem doutrina, os enfermos sem sacramentos, os mortos sem sufrágios nem sepultura, e tanto género de almas em extrema necessidade sem nenhum remédio? (cap. X, pág. 59)

     Perante tanto desconcerto, a saída e a salvação têm de ser reafirmadas - e aí cabe falar da felicidade, da utopia, do ideal a atingir (libertos do enleio que a terra cria).
    Nas linhas do romance cosem-se expectativas e frustrações, libertação e prisão, castigo e perdão - porque no jogo da vida há sorte e azar, felicidade(s) e tristeza(s), ilusões e desilusões que só o tempo pode curar (seja no sentido de corrigir seja no de conservar - com o "sal da terra", talvez, para usar uma expressão do nosso orador seiscentista).

     Desafio(s) - o que Vieira quis assumir, enfrentar, confrontar; o que o autor construiu na obra que quis criar e me deu a honra de apresentar.

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Sobre Arte e o Museu do Prado

     Depois de assistir a um documentário de 2019 intitulado "O Museu do Prado" (TVCine Edition), apetece lá voltar.

       Apresentado por Jeremy Irons e dirigido por Valeria Parisi, trata-se de uma produção para televisão a assinalar a primeira viagem cinematográfica pelas salas, histórias e emoções de um dos museus mais visitados do mundo. Nele encontram-se obras de arte magníficas, contando a história de Espanha desde os Trastâmaras aos Habsburgo, bem como do continente europeu que esteve sob a alçada do império de Carlos V.
Entrada lateral do Museu (estátua de Velázquez)
    Do Salão dos Reinos de Filipe IV (bisneto de Carlos V) ao grande e complexo edifício que abriu as portas madrilenas à arte (primeiro, por mandado de Carlos III de Bourbon, no século XVIII, ao arquiteto Juan de Villanueva; depois reto-mado, após as invasões francesas, por Fernando VII e Isabel de Bragança), destaque para a pintura de Ticiano, Rubens, El Greco, Velázquez, Goya, Dalí - espelhos de tempo e de histórias a (re)descobrir e a (re)viver.
      Aquando dos duzentos anos de abertura ao público (1819-2019), as fachadas principal e lateral do museu estavam em restauro. No interior, eram tantos os espaços e as obras que o tempo esgotou-se na infinitude de pontos de interesse, dos mais antigos aos mais contemporâneos.
      Rever alguns deles neste registo fílmico foi uma boa recordação, por certo. Ainda assim, as cores e as dimensões do autêntico estão para lá do que o ecrã televisivo permite.
     Termina o documentário com uma citação das palavras de Pablo Picasso, diretor do Museu do Prado, em 1936:

"A Arte limpa a alma...

... da poeira da vida quotidiana".

     Lembro-me de ter percorrido alguns dos corredores e das secções do grandioso museu, e ficar com a sensação de que precisava de mais do que dois dias para apreciar tanta herança cultural.

     Entre tantos registos, trouxe este:

"Deposição da Cruz", pintura flamenga (Van der Wayden)

      Um quadro que desafia as linhas da moldura, o espaço da imagem (explorando um efeito claustrofóbico), a própria pintura (apresentando-se com tridimensionalidade, quase como se fosse uma escultura, na composição para lá das linhas convencionais, dos limites retangulares singulares e das linearizações estáticas). Um episódio religioso, bíblico, convoca a reflexão sobre a morte, quase numa coreografia dos corpos inanimados / desfalecidos, sem esquecer o pormenor de uma caveira (ao fundo, aos pés) a impor-se face à grandiosidade das figuras representadas.

        Acho que estou a precisar de um bom banho (de cultura)!

terça-feira, 19 de outubro de 2021

67 anos depois - o reconhecimento oficial

      Uma cerimónia e uma homenagem justas para "Um Justo entre as Nações" português.

       Um exemplo humano a reconhecer, sem dúvida. Pena que, oficialmente, seja passado tanto tempo e depois de a voz da consciência interior ter sido confrontada com a injusta miséria infligida no final da vida. Como mais vale tarde do que nunca, chegou a devida homenagem, porque se impunha. Não foi no mês do nascimento (julho) nem no da morte (abril) Qualquer outro serve, pois este é um homem para lembrar a todo tempo pelo que fez; pelo testemunho que deu.

Aristides de Sousa Mendes - o cônsul de Bordéus (1885-1954)

    Aristides de Sousa Mendes causou incómodo ao poder, desrespeitando o dever de um diplomata: obedecer às diretrizes de um governo nacional(ista) mais interessado em se aliar à força maior da(s) ditadura(s) do tempo. Recusou seguir as ordens de Salazar (e o conluio que acabava por ter com Hitler). Teve um processo disciplinar por isso; sofreu, sabendo que ia ser castigado. Todavia, foi numa cultura de desobediência, e de consciência, que acabou por dar uma lição ao mundo: devolveu, com os vistos que assinou, a vida a milhares de perseguidos; olhou o outro na sua diferença e na sua desgraça, respeitando-o e libertando-o de uma morte certa à mão dos nazis. Fê-lo(s) chegar a Lisboa, tornada porta da esperança e da liberdade para mais de dez mil pessoas.

Jardim dos Castanheiros, junto à Casa do Passal
com árvores plantadas por judeus que visitaram a localidade e homenagearam o seu "salvador" (Foto VO)

     Foi este o legado de um homem. Ou melhor, de um Homem; de um Português, que assumiu um ato de consciência excecional: o de que sempre esteve certo (por mais que os poderes do tempo não o apoiassem).

     Hoje, precisamente há 81 anos, era lida uma sentença que castigava um justo; hoje, neste mesmo dia, um corpo mantém-se longe da capital, na sua terra de Carregal do Sal (Cabanas de Viriato), enquanto uma lápide evocativa é colocada no Panteão Nacional. Relembra um ser humano que salvou a vida de muitos outros e fez da sua a luta por valores e causas com sentido(s) de Humanidade. 


domingo, 17 de outubro de 2021

E vão cinco... (e uns quantos mais deles!)

      Número a propósito do que está para vir (esperemos que seja mais profecia e menos perdição).

   Segundo o Tarot, nas cartas dos arcanos maiores, o cinco corresponde à figura de 'O Papa'. O simbolismo do número, na decomposição de um 4+1, sugere uma ação unitária que dirige as forças materiais; com 2+2+1, uma mediação entre duas fecundidades (a Papisa, na repetição do gérmen, sem esquecer a unidade); com 2+3, uma conjugação de energias (as da Papisa e da Imperatriz, respetivamente), combinando a fecundação de ciclos, de forças mentais associadas à comunicação e comunhão. É uma carta espiritual que evoca a descida do sagrado sobre o material; um aviso espiritual que deve encontrar eco no plano físico; um apelo para a libertação da matéria.
      Talvez um pouco de tudo isto venha a ser Quinto Império: Profecia de Perdição:

Convite para o lançamento público do romance de Manuel Maria

       Mais uma história que deu em livro, diria, parafraseando, grosso modo, um outro título do escritor (com tempo / modo verbal distintos). 
      E quanto à apresentação, acrescento que isso serão 'Contas de um outro Rosário'!
     Por ora, mais não escrevo para que fique algo para dizer proximamente (dia 30 de outubro, pelas 15:30, no Auditório Horácio Marçal - Paranhos), aquando da apresentação deste romance - o quinto do autor (e com cinco palavras no título), que tem tanto de histórico como de ficcional. 

Estudo da capa e contracapa do romance

     Assim o construiu Manuel Maria: como narrativa que recupera Pre. António Vieira da sua senda histórico-biográfica para uma dimensão nova, a de um universo em que a personagem se cruza com Adão e Eva, sem que estas últimas sejam necessariamente bíblicas.

sábado, 16 de outubro de 2021

Se eu quiser falar com Deus

       Um cenário, uma hipótese cheia de condições.

       Assim o compôs Gilberto Gil, nessa melodia que figura em "Luar (A Gente Precisa Ver o Luar)", de 1981, mas que, já um ano antes, era apresentada já num programa televisivo brasileiro: 'Fantástico':

Excerto vídeo relativo ao programa televisivo "Fantástico"

SE EU QUISER FALAR COM DEUS

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que ficar a sós
Tenho que apagar a luz
Tenho que calar a voz

Tenho que encontrar a paz
Tenho que folgar os nós
Dos sapatos, da gravata
Dos desejos, dos receios

Tenho que esquecer a data
Tenho que perder a conta
Tenho que ter mãos vazias
Ter a alma e o corpo nus

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que aceitar a dor
Tenho que comer o pão
Que o diabo amassou

Tenho que virar um cão
Tenho que lamber o chão
Dos palácios, dos castelos
Suntuosos do meu sonho

Tenho que me ver tristonho
Tenho que me achar medonho
E apesar de um mal tamanho
Alegrar meu coração

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que me aventurar
Tenho que subir aos céus
Sem cordas pra segurar

Tenho que dizer adeus
Dar as costas, caminhar
Decidido, pela estrada
Que ao findar vai dar em nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Do que eu pensava encontrar

    Com uma carreira musical iniciada nos finais dos anos cinquenta (1959), o cantor, compositor, instrumentista, e também político brasileiro (foi ministro da Cultura no seu país, entre 2003 e 2008), é reconhecido pela sua contribuição na música popular brasileira, contando já na sua carreira prémios como os "Grammy Awards - Best Contemporary World Music Album" (1998, com o disco 'Eletracústico') e o de "Best World Music Album" (2005, com "Quanta Live"), mais o "Grammy Latino" (em 2001 e 2002, pelas raízes criadas na música brasileira).

      Em 1999, foi nomeado "Artista pela Paz", pela UNESCO - motivo mais do que justo para ser uma referência mundial.

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Completivas encadeadas

       Isto de classificar subordinadas tem algo que se lhe diga.

       Particularmente, quando elas se apresentam em vários níveis de análise.

        Q: Boa noite, Vítor.
          Aqui vai uma frase para análise: "soube perceber o que estava em causa". Qual é a classificação da oração sublinhada?
          Obrigada.

     R: O sublinhado apresenta uma subordinada completiva associada ao verbo 'perceber', um predicador subordinado face ao verbo 'saber' (o predicador da frase matriz, como elemento subordinante). 
       Com essa frase afirma-se que 'alguém soube perceber ALGUMA COISA / ALGO', pelo que o elemento destacado / sublinhado, relativamente à estrutura argumental do verbo 'perceber' (transitivo direto), corresponde ao seu complemento direto.
       De salientar que se trata de um complemento direto de segundo nível (N2), oracional, incluído numa oração já por si subordinada e encadeada numa subordinada anterior (N1) introduzida pela forma verbal 'perceber'. A frase considerada evidencia uma subordinante com a seguinte estrutura: (ALGUÉM) SOUBE ALGUMA COISA. Esta 'alguma coisa' funciona como complemento direto de 'saber', estando esta função configurada numa subordinada completiva não finita infinitiva ('perceber o que estava em causa'). Por sua vez, esta subordinada é constituída por um elemento predicador ('perceber') e o seu complemento direto (oracional - 'o que estava em causa' - pronominalizável pelo pronome 'isso' [= o que estava em causa]).
        Esquematicamente, representa-se a construção (com subordinadas encadeadas) da seguinte forma:

Esquema representativo dos dois níveis de subordinação (B1 e N2) na frase analisada.

        Assim, o sublinhado indicado é um complemento inserido num segundo nível de predicação, com o núcleo predicador a selecionar complemento direto.

sexta-feira, 8 de outubro de 2021

Morrer na praia

      O dia iluminou-se com um radioso sol...

     Regressado o bom tempo, revive-se o conforto desses momentos que nos deixam apreciar o final de uma outoniça, mas calorenta tarde, aromatizada pelo iodado vindo do mar, numa combinação a que não falta uma fresca névoa esfumada, a embaciar levemente a paisagem.
     Erguido o olhar para o alto, como para sorver agradecidamente o terapêutico ar, reparei num céu cruzado, que decidi guardar em foto:

Céu cruzado junto à Granja (Foto VO)

     No enlevo do instante, fui subitamente espertado pelo aparato ruidoso de sucessivas sirenes, trazendo o sobressalto e a aflição. Bombeiros, polícia marítima e muitos curiosos deixavam-se ficar na praia. Não era a simetria dos traços nem a variedade das cores celestes que os atraíam. No areal, havia um corpo humano estendido, inanimado. Morto. Tudo tão rápido. Ninguém conseguia explicar o sucedido. Simplesmente caiu, quando caminhava naquela linha de areia que fica entre o molhado e o seco. Foi aí que o corpo encontrou o seu leito de morte, bem próximo daquele outro que dizem ser a origem de tudo, mas que, no seu vaivém ondulatório, nada trouxe a quem deixou definitivamente de ver o espetáculo do céu cruzado, pintado de algum dourado em tela de fundo azul.
      Por vezes, a vida reduz-se a isto: a uma rápida queda sem recobro. Nada resta; nada mais há. Só chão - no caso, areia, a mesma que, na ampulheta, se deixa cair de uma âmbula para outra até esgotar. Tudo acaba, mesmo quando alguém vai em socorro e ao encontro do que já só é um peso inerte, algures deixado, abandonado de todos os sentidos.
     O céu cruzado e a luz ainda quente assistiam a alguém caído, a esfriar à medida que as sombras e o escuro surgiam, extinguindo as cores do dia. Azul, só o das luzes rotativas das viaturas que, agora paradas e em silêncio, haviam trazido socorro a destempo; calor, só o da humanidade dos que prestavam os cuidados derradeiros, ensacando quem partira numa última viagem, já sem horizonte.

      ... até que a vida se apagou. Literalmente, alguém morreu na praia. RIP.

quinta-feira, 7 de outubro de 2021

A propósito do 'é que'

     Retomemos a noção de construção clivada no português e o operador 'é que'.

     Já lá vai algum tempo. Pronunciei-me sobre a questão já há alguns anos. Uma nova questão permite-me recuperar esse escrito.
 
    Q: Olá, Vítor! A professora da filha de uma colega classificou como pronome relativo o "que" presente nesta frase: "Por isso é que tens de ir à escola". Sinceramente, eu não concordo; no entanto, também não sei como o classificar quanto à classe de palavras. Vejo que está associado à forma verbal "é", pelo que, para mim, é uma expressão de realce. Será que me podes dar uma ajuda, por favor? 

    R: Olá. Com a expressão 'é que', estamos perante um processo de gramati-calização, ou seja, um  processo de mu-dança linguística pelo qual uma pala-vra muda de estatu-to, passando a ser equacionada em ter-mos mais funcionais ou gramaticais. Mais do que a classifi-cação dos termos quanto à classe de palavras, estes valem pela funcionalidade de realce / destaque atribuída a um segmento discursivo-textual. 
   Assim, enquanto unidade, a expressão em causa proporciona uma funcionalidade discursiva própria, tomando-se o 'que' como um operador de uma estrutura ou construção clivada ou de clivagem (cf. M.ª Helena Mira Mateus et al., Gramática da Língua Portuguesa, 2003, págs. 685-694). Concordo contigo quanto a este 'que' não ser um verdadeiro pronome relativo. A sua classificação situa-se mais no plano de análise discursivo-textual, da gramática de texto, do que no da tradicional gramática da frase. Neste sentido, é no âmbito de um alto grau de gramaticalização e do estudo do que João Andrade Peres e Telmo Móia designam de construções enfáticas ou construções de foco (Áreas Críticas da Língua Portuguesa, Lisboa, Editorial Caminho, p. 91, nota 12) que nos devemos situar.
      Ainda que, nalguns estudos, se aborde o 'é que' como expressão em construção aparentada com as relativas livres (e daí a eventual classificação mencionada na tua questão), creio estarmos perante uma situação bem distinta no exemplo dado. Distinguiria bem os exemplos seguintes:

(i) O queijo (é que) foi comido pelos convivas.
(ii) Os convivas (é que) comeram o queijo.
(iii) O que é que a jovem comprou? (< O que comprou a jovem?)
(iv) Porque (é que) fizeram isso?
(v) Por isso (é que) tens de ir à escola.

      Se i a iii podem ser encaradas como construções aparentadas com as orações relativas (com o 'que' eventualmente a destacar o constituinte retomado de uma frase - o sujeito da passiva em i e o da ativa em ii; o complemento direto em iii, depreendido como o objeto interrogado), o mesmo já não sucede em iv e v, mais associadas a sentidos pragmáticos decorrentes de atos de fala.
     Atendendo ao exemplo v, 'é que' funciona como introdutor de um ato de fala que sai realçado ou enfatizado no seu conteúdo na sequência de uma razão ou motivo a dar lugar a uma necessidade (consequente). É o que se pode depreender na relação dialógica dos enunciados A e B:

(vi) (A) - Ainda não sei ler / escrever.
       (B) - Por isso (é que) tens de ir à escola.

      Num só enunciado, vi A e B poderia ter a seguinte configuração, se resultante de um só enunciador para com o seu enunciatário:

(vi a) Ainda não sabes ler / escrever. Por isso (é que) tens de ir à escola.

      Face à constatação / asserção de um dado (primeira sequência de vi a), surge o conselho consequente (segunda sequência), destacado face ao ato de fala anterior (tomado como premissa para um raciocínio consequente). Responsável pelo realce / destaque atribuído ao ato consequente , 'é que' (enquanto unidade) proporciona uma funcionalidade discursiva própria, específica ao 'que', tomado como um operador do que os estudos linguísticos designam estruturas ou construções clivadas
      Em suma, a classificação deste 'que' situa-se mais no plano de análise discursivo-textual, da gramática de texto e da pragmática do que no da tradicional gramática da frase. Encaixa-se na definição proposta, no Dicionário Terminológico, para a entrada 'Marcador discursivo', onde se encontram os operadores discursivos com a função de reforço argumentativo.

      Apetece dizer que há níveis distintos de análise na língua. Convocar classificações típicas para realizações linguísticas que requerem níveis de análise mais complexos não me parece ser a prioridade de trabalho para determinado tipo de alunos e de situações de aprendizagem, onde as regularidades devem ser mais exploradas (particularmente quando o objetivo de estudo parece ser o da classificação e não o da análise de especificidades nas condições de produção discursiva). Espero ter ajudado.