sábado, 13 de agosto de 2022

Um dia depois...

      Porque é agosto, é dia de sol, ...

     Porque a seguir a um dia vem outro e há quem esteja já para lá do tempo (que passa sempre). É o caso de Miguel Torga.

               MÁGOA

Medas de trigo ao sol - Agosto,
Tudo o calor do Sonho amadurece;
Só a verdade amargura do meu rosto
Permanece!

Até me lembro que não sou da vida!
Que não pertence à terra esta tristeza…
Que sou qualquer desgraça acontecida
Fora do seio mãe da natureza.

E contudo não sei de criatura
Que mais deseje ter esta alegria
De um fruto azedo que arrancou doçura
Do céu, das pedras e da luz do dia.
.
Leiria, 11 de Agosto de 1940.
in Diário I

     Sem mágoa(s), sem medas de trigo, sem querer ser "desgraça acontecida", há a consciência do que possa fazer ensombrar e perigar esta vida; mas há também palavras a combinar e a criar alguma da magia que só os eleitos conseguem trazer à escrita poética, como que peneirando, do pó da terra, o ouro vital que a ela nos liga.
     Nos grãos de areia que caem no relógio, há tempo para que a poesia dos versos torguianos adoce o dia - o de hoje e o do futuro.

    Porque ontem foi mais um dia para o celebrar e hoje, e sempre, faz sentido (re)lembrar.

sexta-feira, 12 de agosto de 2022

"Uma aventura" junto à praia

      Chegando ou saindo da praia...

     Há uma barraquinha junto à entrada da Praia / Bar do 37, em Espinho, à espera que uma mãozinha abra a porta e escolha um livro. Para todos os gostos e vontades, o convite ao "mergulho" é feito:

Uma aventura pela leitura

      Em tempo de calor, qual gelado apetecido, abre-se a porta (que mais parece de uma arca frigorífica) para um "self service" de livro(s) à espera de ser(em) lido(s).
      Podia ser deixado no assento de um transporte público, num banco, no areal, numa mesada de esplanada... Fica a sugestão de uma barraca refrescante, mesmo à mão e aos olhos dos transeuntes. Um acesso facilitado para leitores potenciais que, no meio da parafernália que possam levar para a praia, se tenham esquecido desse bem que nos alimenta e refresca a mente.

      ... é tempo de leitura, quando as férias convidam à aventura.

terça-feira, 9 de agosto de 2022

Erros (muito) reais

       Seja porque eles existem seja porque se referem à realeza.

      Naquele momento em que se folheia daquelas revistas que nada trazem senão o alheamento desejado face ao mundo em que vivemos, e apetece mesmo desfolhá-las (agora, sim, termo intencionalmente usado no verdadeiro significado da palavra); ou quando os olhos passam por um monitor e apetece eliminar o registo de uma daquelas notícias que nada trazem de sério ao mundo (daí a designação da "silly season", que mais se ajusta aos "silly writers"):

Um vestido que não cumpre o estatuto da realeza, pela falta de "comprimento".

       Lá está: o vestido não cumpre o objetivo para que foi feito. Estaria aí o cumprimento irreverente (ou melhor, o incumprimento). No que toca a ser curto, a conversa é outra. É a que respeita a tamanhos, medidas. Centra-se na questão do comprimento (pois... com 'o').
     A paronímia (estudada como caso de relação lexical) devia andar de mãos dadas com o ensino dos casos críticos de ortografia, para que ninguém ousasse escrever o que foi publicado para milhares de olhos poderem ler.

     Isto de confundir 'comprimento' com 'cumprimento' não dá razão para saudação; motiva, sim, a aplicação de medidas de correção (bem necessárias a julgar pela frequência no erro cometido).

domingo, 7 de agosto de 2022

O elogio (que foi o) de ser filho da mãe

      As palavras têm muito que se lhe diga... e muito para contar.

    Nem tudo o que parece é, por certo. Se o que é tomado por insulto começou por ser elogio, razões houve para que o uso assim o determinasse.
    Conta-o e esclarece-o Sérgio Luís de Carvalho, na base do aconselhamento de um livro (Elogio da Palavra, de Lamberto Maffei) e na explicação que dá a propósito da expressão "filho da mãe":

História do Filho da Mãe (ou de como do elogio se faz insulto)

    Quem diria que, não obstante a condição de bastardia, estaríamos a referenciar relações em que realeza e espiritualidade se cruzaram. Longe desses universos (dos tempos de D. João V e das suas  frequentes paixões freiráticas), atualmente estamos mais para a expressão do insulto, do ofensivo (que uns focam no filho e outros na mãe, para não falar nos que se sentem ofendidos por ela e por si mesmos, alegando ainda assim a defesa apenas da primeira). Um outro claro caso de deriva, variação, evolução na língua, portanto.

      Prova de que as palavras, em particular, e a língua, em geral, são fruto da circunstância de quem a(s) usa, a quem a(s) dirige, quando e onde a(s) utiliza, com a intenção visada. Fale-se de pragmática e, inclusivamente, de pragmática histórica, marcando a variação temporal dos usos.

sábado, 6 de agosto de 2022

Triste dia, o de ontem, para a poesia

      À hora da morte, há quem diga que se vai para o céu. Que céu é este?!

    Não sei se sim ou se não. Sei que os olhos perdem quem para lá tenha ido (mesmo que, por vezes, ilusoriamente, haja uns laivos de reencontros impossíveis). A memória procura contrariar a perda, mesmo que a representação feita esteja mais para uma construção subjetiva do que para a realidade objetiva que (se) foi.
   Ana Luísa Amaral, reconhecido nome nacional da poesia contemporânea, revelou--se apaixonada pela expressão poética, pela língua, pela palavra, num trabalho que encarou como "amor, angústia e necessidade". Recebeu o Prémio Rainha Sofia, em 2021, que lhe foi atribuído pelo Património Nacional de Espanha e pela Universidade de Salamanca, com o qual fica notabilizada junto de nomes da língua portuguesa como João Cabral de Melo Neto (1994), Sophia de Mello Breyner Andresen (2003), Nuno Júdice (2013), a par de muitos outros grandes autores da tradição e cultura iberoamericanas.
        No seu percurso poético, iniciado com "Terra de Ninguém" (primeiro poema do seu primeiro livro - Minha Senhora de quê, publicado em 1990), há uma possível resposta para o entendimento do que é um "céu":

Um Céu e Nada Mais

Um céu e nada mais — que só um temos,
como neste sistema: só um sol.
Mas luzes a fingir, dependuradas
em abóbada azul — como de tecto.
E o seu número tal, que deslumbrados
neram os teus olhos, se tas mostrasse,
amor, tão de ribalta azul, como de
circo, e dança então comigo no
trapézio, poema em alto risco,
e um levíssimo toque de mistério.
Pega nas lantejoulas a fingir
de sóis mal descobertos e lança
agora a âncora maior sobre o meu
coração. Que não te assuste o som
desse trovão que ainda agora ouviste,
era de deus a sua voz, ou mito,
era de um anjo por demais caído.
Mas, de verdade: natural fenómeno
a invadir-te as veias e o cérebro,
tão frágil como álcool, tão de
potente e liso como álcool
implodindo do céu e das estrelas,
imensas a fingir e penduradas
sobre abóbada azul. Se te mostrasse,
amor, a cor do pesadelo que por
aqui passou agora mesmo, um céu
e nada mais — que nada temos,
que não seja esta angústia de
mortais (e a maldição da rima,
já agora, a invadir poema em alto
risco), e a dança no trapézio
proibido, sem rede, deus, ou lei,
nem música de dança, nem sequer
inocência de criança, amor,
nem inocência. Um céu e nada mais.

                                                              in Às vezes o Paraíso (1998)

      Eis um "céu" que nos mostra que não somos ninguém ou que somos (apenas) o que podemos ser; um "céu" de que, entre o nível do quotidiano e o cósmico, se compõe a afirmação do real mais a negação do que esteja / seja mais do que simples "amor". 
      Cruzada esta mensagem com "Soneto científico a fingir" (in E muitos os caminhos, de 1995), este é, afinal, um "céu" que dá mote ao amor, a esse tema que, desviado, não deixa de posicionar o ser humano na condição que verdadeiramente o dignifica. Ou seja, estamos perante "um céu e nada mais" que pode ser tudo, numa leitura subversiva da negação, instaurada nos versos, mas (a)firmada na posição das possibilidades, do poder ser.

Um breve roteiro pela obra poética de Ana Luísa Amaral (1956-2022)

      Cruzei-me com a professora nas salas da antiga Faculdade de Letras da Universidade do Porto e na expressão da poesia romântica em língua inglesa, por ela ensinada e convocada nas relações interartísticas e intertextuais que o mundo traduz; que aquele que a escreve faz representar; que o tempo (re)compõe e nela se atravessa, quando é grande.
     Aos 33 anos, viu publicada a sua primeira obra; aos 66 partiu, ontem, desta vida terrena, com muitas publicações e estudos que ficam para nós, numa comunhão / comunicação feitas de humanidade e genuinidade - no fundo, ensinamentos que dão sentido à existência, apartados de tudo o que se mostre impertinente ou ferino.
   Foi para o "céu"? Deixou-nos um "céu": o do pensamento; o das línguas, culturas, letras e humanidades, que serviu em todos os sentidos; o do respeito pela igualdade e solidariedade sociais, enquanto exemplo e testemunho de empenho cívico, num "amor" tão pessoal quanto coletivo.

      Da literatura inglesa (e de expressão inglesa) à portuguesa - um caminho que também se faz de um "céu" comum, livre de fronteiras, e com uma poeta que revelou O Olhar Diagonal das Coisas (conforme no lo dá hoje a conhecer a Assírio&Alvim, numa compilação significativa e atualizada da sua obra poética).

quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Abate dos pulmões... e dos lares

      Quando se fala de ambiente e de preservação do planeta, ...

     É frequente ouvir-se que a Amazónia é o pulmão do mundo. Na importância vital deste amplo espaço para o planeta, regista-se, porém, que a maior parte do oxigénio aí produzido é, desde logo, consumido pela própria floresta amazónica na respiração e na decomposição de animais e plantas. Outros pulmões são essenciais, bem mais dominantes - como os oceanos -, para um planeta tão vasto.
      Diga-se que cada gota está para o mar como cada folha ou ramo germinam da terra. Ambos se complementam e a ameaça de qualquer um deles compromete um equilíbrio necessário.
      Por isso, quando os tempos são incendiários e destruidores do ambiente, faz todo o sentido lembrar, com imagens críticas, o relevo do que se perde:

Era(m) só (de) um mundo mais purificado... Era(m)!

     Cada árvore abatida é um lar destruído, um perigo planetário a aniquilar a sobrevivência dos seres vivos.

      ... fala-se do pulmão que nos ajuda a respirar, mas é bom que não nos esqueçamos do nosso grande lar.