quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Qual satisfação?!

     Isto de confundir nomes com formas verbais definitivamente não combina com educação.

    Ontem, num programa televisivo em que se discutia os motivos da greve de professores e se avançavam os argumentos mais diversificados, segundo as perspetivas em discussão, houve aquele momento sem qualquer hipótese de demonstrar "carinho" (para citar apenas quem se pronunciou em tais termos):

Uma imagem a fazer perder uma palavra (com agradecimento à AMT)

   Sem cara nem identificação, lá apareceu um rodapé confundindo o pretendido 'satisfaçam' (forma verbal no presente do conjuntivo) com a indesejada 'satisfação' (nome). No que toca ao domínio da língua portuguesa, não há comunidade educativa que veja as necessidades educativas satisfeitas, desconhecendo-se a ortografia (distintiva na terminação em 'am' e 'ão'), a fonética (tão marcadamente contrastiva entre sílabas tónicas e as que não o são) e a morfologia.
     É ou não é triste ler o que não se deve? Nem o programa conduzido por Carlos Daniel o merece nem Mariana Carvalho (citada) é respeitada no que diz quando se dá a ler tamanha incorreção. 
      Umas aulas de gramática impõem-se em qualquer curso de comunicação, na rádio ou na televisão.

     Uma desgraça nunca vem só, e logo num canal de televisão (RTP1) que se põe a jeito, perdendo a imagem e a razão (e assim prossegue a impunidade de quem escreve para a nação)!

domingo, 22 de janeiro de 2023

De um final de tarde em braseiro

      Depois da chuva contínua,...

     O sol brilhou hoje, fazendo por momentos esquecer o tempo inverniço (ou invernengo, tanto faz) que nos tem marcado os dias.
      Não fosse o frio sentido ao final, dir-se-ia que as cores do pôr do sol aqueciam o olhar

Entre a terra e o céu, uma estrela cai para a linha do horizonte (Foto VO)

   Espreitando por entre as copas das árvores, essa estrela branca irradiou luz e vestiu-se de um amarelo alaranjado quando caía na linha do horizonte, aqui e além distribuindo raios a rasgar a densidade sombria que da terra se ergue na direção do céu.
     Este parecia estar em braseiro, com as nuvens em tons de fogo e de cinza, entre lume e carvão. Só no alto se via o azul, mais subido, límpido.
     Esta foi mais uma perceção do meu olhar.

      ... regressaram as cores que aquecem o frio inverno e fazem ansiar pelo dourado verão.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

Porque é hoje o dia

     Cem anos depois do nascimento.

     Talvez o desmereça, mas foi o que quis fazer, recuperando temas, títulos, versos, ideias. Trazê-lo à vida, ao hoje (porque do presente se fez, sem querer pensar muito no amanhã), com um sorriso.

FOSTE...

Disseste
que há palavras interditas;
palavras que nos beijam;
algumas, um cristal;
outras, um punhal.

Saíste da moldura,
foste com as aves
e viste na poesia
a música que sempre teve:
um acorde perfeito.

Rejeitaste a pureza.
Nas viagens que fizeste,
juraste ver a luz tornar-se pedra.
Nascido em inverno,
aspiraste às tardes de setembro.
Buscaste o campo e o silêncio.
Quiseste falar das oliveiras, 
de uma cerejeira em flor,
da figueira e do trigo maduro.
Preferiste as mãos e os frutos.

Afirmaste a urgência do amor,
de um barco no mar;
e quando perguntaste
"Que diremos ainda?",
mergulhaste na água;
escreveste na terra;
entregaste-te ao fogo;
levitaste no ar
e puseste no céu a lua.

Voltaste à fonte, ao rio, ao mar...
Molhado pelo orvalho,
deixaste-o escorrer no corpo.
Bebeste-o como lágrima,
quebrando a dor, a secura.
Suaste no trabalho da sílaba,
da palavra, dos versos.

Nas perdas, 
alimentaste o isolamento.
Entre brutalidade e ternura,
o rigor, o rumor, o corpo habitado,
sentiste o peso da sombra
e desejaste ser árvore.

À hora da despedida,
no tempo em que se morre,
um rio te esperou.
Ficaste na memória,
como a canção de Laga.

Tens um nome.
És lido aqui, neste país, agora.

Estarás em paz entre os anjos.
                                                  Espinho, VO

      Ao jeito de palimpsesto e de intertexto, fica uma combinação que soa a dedicatória a um grande da criação e da expressão poética lusa. Ao funcionário público que se tornou poeta. A um mestre que deu grande lição.

      Ao Eugénio que foi José e que do Fontinhas se fez Andrade.

terça-feira, 17 de janeiro de 2023

Já não é só no café...

       Isto porque me lembro de já me ter confrontado com esta situação noutro tempo e noutro local.

     Um empregado de café, um gerente desse local ou um não comunicador a cometer um erro do tipo até já dou como falha indesculpável. Imperdoável mesmo é que um canal público televisivo exponha esse mesmo erro aos espectadores que assistem a um dos programas com audiência significativa, com apresentador reconhecido e com propagado serviço público, culturalmente relevante:

Um território ultramarino à espera do adjetivo bem escrito (Foto VO)

      Num concurso em que alguém diz que já foi tramado por um "abacaxi" ou com um locutor a repetir insistentemente o termo "confiança", na abertura do programa hoje emitido, há um desafio que vai bem além da fruta e leva qualquer um a desconfiar de que algo vai mal nos meios de comunicação social.
      Que não se saiba a resposta certa para a questão formulada (Nova Caledónia) é mal menor. Bem pior é não saber escrever, particularmente alguém que trabalha na televisão pública e faz difundir o que não deve!

    Só faltava alguém dizer que a culpa é do professor que ensinou "français". (Vai um questionariozito para quem trabalha ou venha a ser contratado pela RTP?!)

quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

Publicidade para limpeza

      Ao chegar a casa, recolho a publicidade da caixa de correio.

      Um pequeno folheto anuncia limpezas e, ao lê-lo,...

Publicidade "pouco limpinha" (Foto VO)

    ... reparei no asseio demonstrado nos "Escritórios", eliminando-se indevidamente a acentuação na palavra. 
     Lá diz a gramática da nossa língua que as "falsas esdrúxulas", isto é, palavras terminadas com encontros vocálicos habitualmente proferidos em ditongo crescente (casos de 'ébrio', 'lítio', 'rádio', 'água', 'égua', 'armário', condomínio, 'secundário' e 'secretário', por exemplo), são graficamente acentuadas na sílaba mais intensa.

      Limpeza, sim, mas nem tanto!

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Inconformismos

     Dois apontamentos, pelo dia em que ambos desapareceram (os homens, não os apontamentos)

     Um primeiro, mais atual, é para recordar o sociólogo e filósofo Zygmunt Bauman (19 de novembro de 1925 – 9 de janeiro de 2017):

Bertrand a citar um pensamento (criticamente) muito válido

     Um segundo, mais recuado no tempo, é para retomar um texto de alguém já mencionado nesta "carruagem" por várias vezes (três, creio... quem sabe... quatro), mas agora numa outra voz: a de um outro Mário (Viegas). Entre inconformismos, a identidade de ambos vai além do nome, como se pode ver no seguinte registo vídeo:

Programa televisivo "Palavras Vivas" (Canal 1 da RTP), com declamação de Mário Viegas

      E depois da voz, a leitura silenciosa esboçando um sorriso, na paródia pressentida:

A Invenção da Água

Como muito bem se sabe, no princípio não havia água.
Só havia o verbo.
Depois apareceram o sujeito e o complemento direto.
Mas de água, nada.

Então todos começaram a beber vinho e deus achou que era bom.
E lá isso era!

No entanto, com o aparecimento das primeiras culturas
do tipo comercial, tornou-se evidente
a falta de qualquer coisa
que pudesse aumentar a produção do vinho
e torná-lo mais rentável.

Era a água, claro.

Mas não havia água, como já fizemos notar.
As primeiras pesquisas,
então ainda bastante primitivas,
levaram à descoberta da água-pé.

Embora curiosa, essa descoberta não resolveu,
de forma alguma, o fim pretendido.
Continuava a não haver água. As pesquisas prosseguiram.

Felizmente o homem é assim, nunca desiste.
É isso que faz o progresso.
E largos tempos passados chegou-se a nova descoberta:
a aguardente.

Era melhor, não duvidemos, mas realmente não era o desejado.
Faltava a água. Definitivamente.
As civilizações pastoris, no seu nomadismo constante,
descobriram, acidentalmente, a água-bórica que,
aliás, nunca serviu para nada. Coisas de nómades.

Foi então que no seio das culturas orientais
mais avançadas tecnologicamente,
surgiu a grande invenção:
um misterioso pó branco que,
deitado em mínima quantidade num litro de água,
o convertia,
quase milagrosamente,
num litro de água.
ESTAVA INVENTADA A ÁGUA

Inicialmente rara e só usada para fazer vinho,
tornou-se no entanto com o desenvolvimento industrial,
bastante acessível e abundante.

Ergueram-se os primeiros lagos,
deu-se início aos rios pequeninos e,
finalmente surgiram os rios maiores,
aqueles muito grandes,
que consta várias pessoas já terem visto por aí.

Este progressivo desenvolvimento líquido
teve como consequência
o aparecimento de poderosas civilizações marítimas,
que se desenvolveram de tal maneira que nos puseram
no brilhante estado em que nos encontramos.

É o que fazem as invenções.

No entanto, e mesmo com a atual abundância,
não devemos abusar, dada a tremenda
explosão demográfica que se está registando.

Parece-nos mais prudente beber gin. Sempre.


Mário-Henrique Leiria
in Obra Completa - A Poesia, vol. II (inclui poemas inéditos), 
org. Tania Martuscelli
2018 (póstumo)

     De Bauman, sublinho a verdade que procuro contrariar no meu dia-a-dia (por mais que haja quem me queira lembrar trabalho, quando dele saio); de Mário-Henrique Leiria, fica, por ora, a escuta, a leitura e o brinde, com gin (já que, de água,... nada!)

     Dois tempos, dois seres, dois apontamentos... à guarda de melhores ventos.

sábado, 7 de janeiro de 2023

Um conselho com defeito

    No arranque de novo ano, podia ser conselho a ter em consideração.

    Lá poder podia, mas... falta-lhe a qualidade da correção:

Um momento sem sucesso, por conselho tão avesso (Foto VO)

   Formulado a partir de uma forma do verbo 'desfrutar', reflete a ortografia esse princípio morfológico do reconhecimento da base da palavra. Conselho, pedido, aviso, ordem que seja, escreve-se "Desfruta". 
    Faça-se, portanto, acompanhar o conselho defeituoso da virtude corretiva:

Um momento com revisão, para superar falha na confeção (Foto VO)

  Se, por acaso, alguém receber esta mensagem na forma de avental de cozinha, não o lave, para poder "desfrutar" do acrescento produzido na prenda recebida. É a prova do momento vivido na amizade, mas sempre como professor(a) de Português.
  
    O dever do ofício é uma obrigação, acompanhado do devido código de correção, para compensar o defeito de produção.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

Há cem anos nascido

       Entre a prosa e o verso, ficaram os livros do gin.

     Homem das Belas Artes, rendeu-se à escrita (arte bela, pois sim). Em janeiro nascido, no mesmo mês desaparecido, foi escritor surrealista português.
  Mário Henrique Baptista Leiria viu-se politicamente perseguido, preso pela PIDE, até se instalar no Brasil, onde desenvolve uma vivência voltada para a expressão literária. Entre finais da década de 40 e os anos 70, apresentou obra, até que em 1980 morre. A escrita revela o seu espírito indomado, irónico, pouco ou nada obediente aos poderes da realidade político-social do tempo; subversivo o bastante para desafiar os códigos morais e estéticos do (bom) gosto, nomeadamente os da tendência surrealista em que o situaram.
   Cruzei-me com os seus Contos do Gin-Tonic (1973) e Novos Contos do Gin (1974), tão desconcertantes quanto fiéis a uma marginalidade própria de quem constrói um mundo às avessas, criativo e de libertação. Relembro, da segunda obra, uma pequena narrativa intitulada

ÚLTIMA TENTAÇÃO
 
    E então ela quis tentá-lo definitivamente. Olhou bem em volta, com extrema atenção. Mas só conseguiu encontrar uma pera pequenina e pálida.
   Ficaram os dois numa desesperante frustração.
   Não há dúvida que o Paraíso está a tornar-se cada vez mais chato!
    
     Lá se foram a maçã e a serpente, mais a Eva e o Adão; também o Paraíso, dessacralizado na imagem e na palavra.

    Revolucionário, homem de contracultura(s), experimentou a escrita do inconformismo; inventou mundos e vidas coloridos de bizarria, paródia, humor negro. Tudo fora de um convencionalismo do tempo que (não) foi o seu.