Na procura de comédias no cinema, tropecei numa de Goldoni no Teatro Nacional de São João.
A peça, na tradução e encenação de Jorge Silva Melo, conta com a representação de Artistas Unidos: Catarina Wallenstein (Mirandolina), Américo Silva (Marquês de Forlipópoli), António Simão (Conde Albafiorita), Elmano Sancho (Cavaleiro de Rippafat), Rúben Gomes (Fabrício, empregado de Mirandolina), Maria João Falcão ("Baronesa" Hortênsia, de Palermo), Maria João Pinho ("Condessa" Dejanira, de Roma), João Delgado (Criado do Cavaleiro) e Tiago Nogueira (Criado do Conde).
Da autoria do veneziano Carlo Goldoni, A estalajadeira (estreada em 1753) é o alvo nesse conflito setecentista entre uma velha aristocracia em decadência e uma burguesia em ascensão. Num teatro que reflete a mudança no Mundo, no realismo que espelha a questão social e a natureza das relações homem-mulher feitas também dos sentimentos matizados pela sociedade dominante.
Num local de encontros (a estalagem), aprende o público as artes de sedução (da estalajadeira Mirandolina) e como não é credível dizer "nunca mais" (como o cavaleiro que, conscientemente afastado dos perigos femininos, acaba por se render aos encantos de Mirandolina); confronta-se com os vários estratos sociais, as expectativas e as frustrações vividas; partilha, com a heroína, as estratégias de uma sobrevivência que pode sair cara, quando levada ao limite dos estratagemas e dos artifícios. Daí o aviso final, com a moralidade típica do exemplo: "E vós, senhores, aproveitai de tudo o que vistes para vantagem e segurança dos vossos corações. E se alguma vez estiverdes numa ocasião de duvidar, quase a ceder, pensai nos artifícios que vistes. E lembrai-vos da Estalajadeira!"
Mirandolina é "diretora" na representação do amor. É aquela que confidencia ao espectador o que nunca fará, para não cair nas malhas do duque arruinado ou do conde que usa e abusa do dinheiro que tem para tudo conseguir; é aquela que dá a conhecer tudo o que vai ser feito para dominar um cavaleiro que se diz distante dos efeitos de sedução feminina. No exercício desse seu poder - que transforma as relações com o masculino num jogo cómico -, o controlo dos "cordelinhos" pode ser perdido. Mirandolina sabe-o, como o revela ao confrontar astutamente duas comediantes, senhoras sem condição social definida (e sem homem), frívolas, disponíveis para tudo e para todos.
Por isso, a dona da estalagem, no final e por opção própria, cumpre o que lhe está destinado, na sua própria situação: aceitar o que a realidade lhe dá (Fabrício, o homem que a deseja e que se encontra ao seu lado, no seu próprio espaço / universo), em vez de continuar com jogos de teatro, que a podem comprometer.
Entre um duque, um conde e um cavaleiro, a estalajadeira é aquela que define o que quer da vida, dona de si e do seu nariz - um pouco à imagem da Inês Pereira: não quer cavalos que a derrubem (cavaleiro ou alguém de condição "superior"); fica com o "asno" (não tão tolo ou ingénuo quanto o original vicentino, mas alguém que sempre viveu e quis ser em função dela).