Hoje acordei com as notícias a darem conta da festividade criada em torno dos 800 anos da língua portuguesa. Isto se esta não for mais velha.
Considerando o aniversário da nossa língua situado nesta data, ter-se-á em linha de conta que o documento mais antigo do português é o testamento do rei D. Afonso II, datado de 27 de Junho de 1214. Trata-se, de facto, do primeiro documento real (entenda-se, da realeza) que se sabe ter sido datado e escrito para garantir a paz da família e do reino, caso sucedesse a morte prematura do monarca. Tomadas as providências para a sucessão pelo filho varão ou, na falta deste, pela filha mais velha, são ainda considerados outros cenários hipotéticos:
Mitra de Braga, caixa 1, documento 48, 240x495mm
"Em nome de Deus. Eu, rei D. Afonso, pela graça de Deus, rei de Portugal estando são e salvo, temendo o dia da minha morte, para a salvação da minha alma e para proveito de minha mulher D. Urraca e de meus filhos e de meus vassalos e de todo o meu reino, fiz meu testamento para que depois de minha morte, minha mulher e meus filhos e meu reino e meus vassalos e todas aquelas coisas que Deus me deu para governar estejam em paz e em tranquilidade. Primeiramente mando que o um filho, infante D. Sancho, que tenho da Rainha D. Urraca assuma o meu reino inteiramente e em paz. E se este morrer sem deixar descendentes, o filho mais velho que houver da rainha D. Urraca tenha o meu reino inteiramente e em paz. E se não tivermos filho homem, a filha mais velha que tivermos, assuma o reino. E se no tempo da minha morte, meu filho ou minha filha que deve reinar não tiver idade, esteja o reino em poder da rainha, sua mãe. E meu reino siga em poder da rainha e de meus vassalos até quando cheguem à idade. E se eu morrer, rogo ao Papa, como padre e senhor e beijo a terra ante seus pés para que ele receba sob sua guarda e sob sua proteção a rainha e meus filhos e meu reino. E se eu e a rainha morrermos, rogo e peço que meus filhos e o reino sigam sob sua proteção."
(Texto adaptado em português contemporâneo)
Todavia, estudos mais recentes (dos finais do século XX) têm apontado para documentos anteriores, de foro menos real e mais legal, já com indicadores que remontam a registos notariais onde o português sobressai face à língua dos romanos (sem a desinência casual acusativa; com nomes configurados com a terminação típica do que vem a ser o português [o, a, os, as]; com marcas de um sistema preposicional que substitui o sistema casual latino; com uma ordem frásica que se distancia da latina). Exemplo disso é a Notícia de Fiadores, descoberta pela professora Ana Maria Martins - um pequeno fragmento que exibe a data de 1175 que fazia parte do espólio do mosteiro de São Cristóvão de Rio Tinto. Nele se lê uma lista de fiadores de Paio Soares Romeu (elemento da família dos senhores de Paiva e irmão do autor de um sirventês galaico-português: João Soares de Paiva):
"Noticia fecit pelagio romeu de fiadores
Stephano pelaiz .xxi. solidos
lecton .xxi. Soldos
pelaio garcia .xxi. soldos.
Gudisaluo Menendici .xxi soldos
Egeas anriquici xxxta soldos.
petro cõlaco .x. soldos.
Gudisaluo anriquici .xxxxta
Egeas Monííci .xxti. soldos
Ihoane suarici .xxx.ta soldos
Menendo garcia .xxti soldos.
petro suarici .xxti. soldos
ERa Ma. CCaa xiiitia
Istos fiadores atan .v. annos que se partia de isto male que li avem"
(Mosteiro de S. Cristóvão de Rio Tinto, maço 2, documento 10: publ. por Ana Maria Martins: 'Ainda «os mais antigos textos escritos em português»', in Lindley Cintra, Homenagem ao Homem, ao Mestre e ao Cidadão, Lisboa, 1999, 517)
Em suma: a não ter 800 anos, a língua portuguesa tem um documento, com coordenadas identificadas para os lados do concelho gondomarense, que a atesta já com cerca de 840 anos, para o caso de não aparecerem ainda outros, mais recuados no tempo, com a expressão romance (do galaico-português) suficientemente distanciada das produções reais ou dos registos dominantemente latinos.