sexta-feira, 27 de junho de 2014

Um aniversário discutível...

     Hoje acordei com as notícias a darem conta da festividade criada em torno dos 800 anos da língua portuguesa. Isto se esta não for mais velha.

    Considerando o aniversário da nossa língua situado nesta data, ter-se-á em linha de conta que o documento mais antigo do português é o testamento do rei D. Afonso II, datado de 27 de Junho de 1214. Trata-se, de facto, do primeiro documento real (entenda-se, da realeza) que se sabe ter sido datado e escrito para garantir a paz da família e do reino, caso sucedesse a morte prematura do monarca. Tomadas as providências para a sucessão pelo filho varão ou, na falta deste, pela filha mais velha, são ainda considerados outros cenários hipotéticos:

Mitra de Braga, caixa 1, documento 48, 240x495mm
       "Em nome de Deus. Eu, rei D. Afonso, pela graça de Deus, rei de Portugal estando são e salvo, temendo o dia da minha morte, para a salvação da minha alma e para proveito de minha mulher D. Urraca e de meus filhos e de meus vassalos e de todo o meu reino, fiz meu testamento para que depois de minha morte, minha mulher e meus filhos e meu reino e meus vassalos e todas aquelas coisas que Deus me deu para governar estejam em paz e em tranquilidade. Primeiramente mando que o um filho, infante D. Sancho, que tenho da Rainha D. Urraca assuma o meu reino inteiramente e em paz. E se este morrer sem deixar descendentes, o filho mais velho que houver da rainha D. Urraca tenha o meu reino inteiramente e em paz. E se não tivermos filho homem, a filha mais velha que tivermos, assuma o reino. E se no tempo da minha morte, meu filho ou minha filha que deve reinar não tiver idade, esteja o reino em poder da rainha, sua mãe. E meu reino siga em poder da rainha e de meus vassalos até quando cheguem à idade. E se eu morrer, rogo ao Papa, como padre e senhor e beijo a terra ante seus pés para que ele receba sob sua guarda e sob sua proteção a rainha e meus filhos e meu reino. E se eu e a rainha morrermos, rogo e peço que meus filhos e o reino sigam sob sua proteção." 
(Texto adaptado em português contemporâneo)

       Todavia, estudos mais recentes (dos finais do século XX) têm apontado para documentos anteriores, de foro menos real e mais legal, já com indicadores que remontam a registos notariais onde o português sobressai face à língua dos romanos (sem a desinência casual acusativa; com nomes configurados com a terminação típica do que vem a ser o português [o, a, os, as]; com marcas de um sistema preposicional que substitui o sistema casual latino; com uma ordem frásica que se distancia da latina). Exemplo disso é a Notícia de Fiadores, descoberta pela professora Ana Maria Martins - um pequeno fragmento que exibe a data de 1175 que fazia parte do espólio do mosteiro de São Cristóvão de Rio Tinto. Nele se lê uma lista de fiadores de Paio Soares Romeu (elemento da família dos senhores de Paiva e irmão do autor de um sirventês galaico-português: João Soares de Paiva):

"Noticia fecit pelagio romeu de fiadores 
Stephano pelaiz .xxi. solidos 
lecton .xxi. Soldos 
pelaio garcia .xxi. soldos. 
Gudisaluo Menendici .xxi soldos 
Egeas anriquici xxxta soldos. 
petro cõlaco .x. soldos. 
Gudisaluo anriquici .xxxxta 
Egeas Monííci .xxti. soldos 
Ihoane suarici .xxx.ta soldos 
Menendo garcia .xxti soldos. 
petro suarici .xxti. soldos 
ERa Ma. CCaa xiiitia 
Istos fiadores atan .v. annos que se partia de isto male que li avem"

(Mosteiro de S. Cristóvão de Rio Tinto, maço 2, documento 10: publ. por Ana Maria Martins: 'Ainda «os mais antigos textos escritos em português»', in Lindley Cintra, Homenagem ao Homem, ao Mestre e ao Cidadão, Lisboa, 1999, 517)

      Em suma: a não ter 800 anos, a língua portuguesa tem um documento, com coordenadas identificadas para os lados do concelho gondomarense, que a atesta já com cerca de 840 anos, para o caso de não aparecerem ainda outros, mais recuados no tempo, com a expressão romance (do galaico-português) suficientemente distanciada das produções reais ou dos registos dominantemente latinos.

quinta-feira, 19 de junho de 2014

O regresso a casa

       Não, não fui viajar. Só uma ida ao teatro (que permite, por certo, outro tipo de viagens).

    Desta feita, a peça foi baseada num texto do britânico Harold Pinter, Nobel da Literatura em 2005 apresentado pela academia como dramaturgo cujas peças tanto resvalam no choque de conversas absurdas do quotidiano como invadem a opressão da interioridade ou dos espaços fechados.
    De meados da década de sessenta do século passado, The Homecoming (1964, publicado no ano seguinte) é o título original para uma representação baseada na tradução de Pedro Marques - 'O regresso a casa' - e na encenação de Jorge Silva Melo.
    Nela há o poder do número (cinco homens em palco para uma mulher); há o poder da palavra (ora rude no tratamento, ora rude e feroz no registo, ora insinuante e insidiosa no que sugere); há o poder da interação e do diálogo (por vezes evasivo, por vezes irritante, insistente, tenso e que desarma quem a eles assiste, pela questionação e pela [des]associação de sentidos; pelos implícitos, subentendidos e malentendidos que fluem nos discursos); há o poder de uma mulher só (que vai dominando o espaço por que se movimenta; as personagens que a vão revendo diferentemente, que a procuram controlar, até se verem sorridente e desafiadoramente manipuladas, observadas).
     Harold Pinter, em 1958, escrevia que não há distinções fortes entre o que é real e o que não o é, nem sequer entre o que é verdadeiro e o que é falso; as coisas não são necessariamente ou verdadeiras ou falsas: podem ser tanto verdadeiras como falsas. Há poderes feitos do vazio; há forças de controlo que se impõem com silêncio, com olhares, com interesses e conquistas nada efusivos.

Fotografia de Jorge Gonçalves: representação de 'O regresso a casa' (com João Perry [Max] e Maria João Pinho [Ruth])

    No fim, mais do que o núcleo familiar (marcado por um sentido de exploração, deformações e desvirtuamentos trazidos para o presente) é o interesse individual que se destaca: o de uma mulher que escapa a um casamento vazio (encarado como deserto);  que pretere um marido e um académico algo estéril e inconsequente; que prefere viver no seio de uma arena de interesses, qual aranha tecendo demoradamente a teia, envolvendo as futuras vítimas, até se posicionar centralmente no espaço que assume como seu.
       A cena final - a da mulher sentada na cadeira do patriarca - é o sinal do precipício, do abismo em que o masculino se coloca: dominado, quando se julgava dominador; no fim, quando ainda se julgava com a possibilidade de tudo (re)iniciar. É também a confirmação do poder feminino enquanto símbolo de um estatuto social e sexual em detrimento de uma parceira sexual afetiva (imagem praticamente apagada em toda a peça).

      Reflexão sobre o poder, as questões de género e a natureza incontrolável de algumas forças que marcam e condicionam o ser humano, O regresso a casa é a ação e o jogo do gato e do rato, o confronto entre desejo sexual e domínio territorial; ou, ainda, o regresso a um espaço de memórias, da memória feita de experiências mal resolvidas que, moldando o ser humano, o podem fazer aspirar a uma condição completamente diferente daquela a que o quiseram votar.

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Decididamente, um "olá" sem correção.

     São já tantos os casos que seria bom passar a dizer "Adeus".

    Não há anúncio publicitário da "Olá" que, ultimamente, passe no crivo. E a questão já não limita ao hífen mal usado, repetidamente mal usado, ou aos acentos indevidos.
    Desta feita, junto ao Douro e à ponte da Arrábida, há um registo que falha pela pontuação:


    A saudação e o tratamento dado ao rio tomam-no como recetor da mensagem. Daí a necessidade de vírgula a anteceder "Douro". Faz a diferença.

   As agências publicitárias contratadas para as campanhas da "Olá" mereciam ser processadas, pela frequência de erros ortográficos (e a vários níveis). Não há 'coração' (por mais gelado que seja) que aguente tanta asneira.

terça-feira, 17 de junho de 2014

Dia da Consciência

   Hoje é o 'Dia da Consciência' - iniciativa promovida por um português residente em Nova Iorque para marcar 70 anos passados de uma desobediência que evitou um sofrimento maior de milhares.

    Está anunciado que, neste dia, Aristides de Sousa Mendes vai ser homenageado em igrejas e sinagogas de todo o mundo, como forma de lembrar os esforços por ele conduzidos para salvar milhares de perseguidos pelo regime nazi.


   Parece coincidência toda esta movimentação em prol do diplomata português, depois da recente deslocação feita a Cabanas de Viriato e à Casa do Passal, há três dias. Mais uma prova de que as motivações para a escolha do local fizeram e fazem todo o sentido. 
     Hoje evoca-se o dia em que o cônsul de Bordéus conscientemente contrariou o conteúdo da Circular 14 (de 1940), aquela na qual Salazar impedia a passagem de vistos a qualquer estrangeiro de nacionalidade indefinida, contestada ou litigiosa; aos apátridas, aos judeus.

      Data de relevo para a Humanidade, não pelo nascimento nem pela morte, mas por ser o dia a partir do qual um Homem optou por estar “Antes com Deus contra os homens que com os homens contra Deus”.

domingo, 15 de junho de 2014

"... sobretudo cansaço"

      Hoje, lembrei os versos do poeta...

    Cumprido o dever e satisfeito o desejo, o balanço do dia de ontem foi muito positivo. Ainda assim, e talvez por isso também, recupero as palavras de Álvaro de Campos:

Declamação de "Sobretudo cansaço...", de Álvaro de Campos

O que há em mim é sobretudo cansaço —
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém,
Essas coisas todas —
Essas e o que falta nelas eternamente —;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada —
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço,
Íssimo, íssimo, íssimo,

Cansaço...

9-10-1934

in Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa, Lisboa, Ática, 1944

     Lembro especialmente o verso que abre, e também os que fecham: "Íssimo, íssimo, íssimo, / Cansaço...
     Tanto há ainda para fazer que é preciso contrariar esta sensação.
     Nada que um cafezinho não resolva, numa canequinha que passa a ser de estimação:


     Assim, fica aqui o antídoto para o cansaço e o agradecimento para quem cuidou e pensou na minha autoestima (a precisar de profundo restauro).

sábado, 14 de junho de 2014

Rumo a Cabanas de Viriato

     O dia foi do Departamento de Línguas (Estrangeira e Materna), para aqueles que aderiram à iniciativa que vai fazendo tradição: o passeio de professores.

      Depois de, no ano passado, termos andado pelas Terras do Demo, desta feita a escolha recaiu sobre Cabanas de Viriato. Tanto se falou de Aristides de Sousa Mendes que fomos ao encontro da casa que nos dá a memória do que injustamente lhe fizeram. Felizmente, há sinais de que a recuperação está para acontecer.

Prospeto e fotos da Casa do Passal (cimo), mais depoimento de Aristides de Sousa Mendes (baixo direita)


      E, tal como a Casa do Passal, é desejável que venha a recuperação da figura, do Homem considerado "Um Justo entre as Nações". Pela ação benemérita que tanto o heroicizou (junto do vulgo) como o destruiu (junto do poder do tempo), é lamentável que o diplomata português ainda permaneça no plano das celebrações e das homenagens nacionais veladas. Têm os estrangeiros (os herdeiros dos sobreviventes ao genocídio nazi) que o destacar, que o homenagear, que o honrar - muitas vezes deslocando-se à terra natal e plantando árvores em memória daquele a quem devem a vida.
      Num breve depoimento de Aristides de Sousa Mendes, é curioso constatar como a vida de um homem se faz de sonho, tomado este último também como pesadelo antecipado. Disto teve consciência o cônsul de Bordéus, num contexto adverso à Humanidade e que ele quis, de algum modo, enfrentar, para minorar a injustiça atroz que se vinha impondo. A luta de um homem pelo bem dos seus semelhantes nem sempre é entendida por quem governa (ou, no caso, desgoverna) - prova de que os motivos da decisão política nem sempre são equacionados à luz de quem ela devia servir. Há "moços" que desiludem (cf. depoimento à direita), por certo, e comprometem os princípios de grandes homens. Foi o caso daquele já considerado como o 'terceiro Grande Português' (programa "Grandes Portugueses", da RTP 1, difundido em 2007) e que, ironicamente, viu no primeiro lugar quem não deixou de o desonrar em vida.
     Em Cabanas de Viriato, visitámos a terra que o viu nascer; ficámos a conhecer histórias de quem o conheceu e com ele chegou a conviver já na fase em que as dívidas eram demasiadas e a sobrevivência acontecia enquanto homem só; encontrámos sinais que interessa divulgar, para projetar o Homem cuja ação altruísta merece o reconhecimento dos tempos.

      Seja esta uma iniciativa inspiradora, para se multiplicar por outras que deem a conhecer quem nunca deve (devia) ser (ter sido) encoberto. Na falta de referências do tempo presente, o passado próximo ainda tem algumas para sublinhar, no que foram de maior.

domingo, 8 de junho de 2014

Das palavras aos atos...

      A expressão é radical e, para mim, mais do que natural.

   Depois de tanto apontamento com os erros dos últimos tempos (a separar o que não é suposto e a provocar a fossilização do erro), partilho da ideia de José Duarte Figueiredo, no registo cómico que se impõe:

Cartoon recolhido do Facebook

      Caso para dizer "Olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço". 

      Até porque retiraria toda a autoridade ao ato.

sábado, 7 de junho de 2014

E o sabor do saber?!

     Há quem esteja preocupado com o SABOR da vida.

   Acrescentam-lhe uns tantos ou quantos "temperos" e aguardam pela felicidade. O problema é quando há "condimento" a mais ou a menos:

Frase promocional da "Inspiring Life" (em circulação pública pelo Facebook)

     Em suma, não há frase que possa falar do sabor da vida (nem inspirar devidamente para tal) se não revelar um simples conhecimento (ou o sabor do saber): não se coloca uma vírgula a separar o sujeito ("o sabor da vida") do predicado ("sempre depende de quem tempera") - conhecimento básico nas regras de pontuação.
      E, já agora, um ponto final, para fechar o pensamento não será sinal de pontuação despiciendo.

      Talvez não fosse mau dispensar alguma preocupação com o SABER.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

'Olá', sem 'Imaginarium' e Adeus!

      Só para confirmar, como a publicidade da 'Olá' anda pelas ruas da amargura!

     Quase como naquelas sequelas fílmicas que mantinham o título e o faziam seguir de um número romano, também podia ter intitulado este apontamento de 'Olá-II', depois do que já foi escrito em registo anterior. E para bem da verdade, talvez já devesse ser 'Olá-III' (depois de, há cerca de um ano, ter já apresentado uma "frescura" desnecessária).
  Cá vai mais um, da mesma natureza morfológica do anterior (que confunde uma construção pronominalizada - verbo mais pronome - com a morfologia flexional de um verbo - que não tem por norma a sua terminação separada da base):

 Cartaz da Olá, manipulado com fins corretivos

    Como, pelos vistos, o mesmo tipo de erro já não é exclusivo de uma só marca, segue-se o registo da contracapa num catálogo da Imaginarium (com brinquedos para crianças):

Cartaz da Imaginarium, manipulado e com a melhor resposta a dar à questão mal formulada

   Não havendo dois sem três, a Imaginarium oferece um brinde: um terceiro erro pela ausência de acentuação na palavra 'Olimpíadas' (esquecimento de quem, por certo, não sabe que as palavras esdrúxulas ou proparoxítonas levam acento gráfico). 
     Casos críticos a mais para uma só língua, cada vez mais maltratada por quem devia ter responsabilidade na exposição pública do que faz (mal).

      Há quem diga que foi uma falha. Outros chamam-lhe um lapso. Fico-me pelo erro.

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Na confluência de vozes e de discursos

     Altura de concluir trabalhos... dá nisto!

  O contacto de hoje centra-se num conteúdo já aqui abordado, no que à modalidade dos discursos representados na narrativa diz respeito.

    Q: Sr. professor, li alguns dos seus trabalhos no blog e gostava que me ajudasse num trabalho. Preciso de um exemplo do discurso indireto livre na obra Memorial do Convento.


    R: Entre as várias formas de relatar, a do discurso indirecto livre identifica-se com a modalidade na qual coexistem marcas (contextuais) de dois discursos distintos: o de quem relata (cita) e o de quem é citado.
     Normalmente, esta modalidade caracteriza-se pelo seguinte:
     . ausência ou apagamento de subordinação entre o discurso citante (na voz do narrador) e o que é citado (na voz da personagem); 
    . compresença de elementos referentes aos contextos dos dois discursos (tomados como um na mistura de duas vozes que aparecem em uníssono, numa espécie de jogo polifónico); 
   . manutenção de marcas deíticas, expressivas; de traços de oralidade e/ou subjetividade associados ao discurso da personagem citada em contiguidade com o discurso citante (do narrador).
       Assim, no caso do Memorial do Convento, de José Saramago, pode ser considerado o segmento seguinte, particularmente o sublinhado:

"Enfim, chegou o dia da inauguração, dormira D. João V no palácio do visconde, guardando-lhe as portas o sargento-mor de Mafra, com uma companhia de soldados auxiliares, posto o que não quis perder Baltasar o ensejo e foi falar aos tropas, mas não lhe valeu a pena, ninguém o conhecia, e que queria ele, que ideia foi aquela de vir falar de guerras em tempo de paz, Homem não me esteja a empachar a porta, que daqui a pouco sai el-rei, dito o que subiu Baltasar ao alto da Vela, ia Blimunda com ele, e tiveram sorte, que puderam entrar na igreja, nem todos vieram a gabar-se disso, e era um pasmo lá dentro,...”
(in op. cit., 33ª edição, cap. XII, pág. 133-134) 

    Neste sublinhado evidencia-se a continuidade de um discurso do narrador (anterior ao sublinhado) com as marcas típicas de estruturas de uma oralidade / interrogativa que corresponde ao discurso produzido pelos soldados (sem a subordinação habitual que implicaria a presença, por exemplo, de um verbo introdutor do relato do discurso - "e perguntaram-lhe que queria ele..."), mas sem ser o direto: o imperfeito (queria), a manutenção da terceira pessoa e dos anafóricos ("aquela") impossibilitam este último.
       Um outro exemplo aproximado pode ser encontrado no seguinte excerto:

"Entretanto, se é dia, estarão dormindo a sesta os maridos ingénuos, ou que fingem sê-lo, e se noite é, quando soturnamente as ruas e as praças se enchem de multidões que cheiram a cebola e a alfazema, e o murmúrio das orações sai pelas portas escancaradas das igrejas, se é noite, mais descansados se sentem, porque assim a demora não será tanta, já se ouviu bater a porta, soaram os passos na escada, vêm falando familiarmente a ama e a criada, pudera não, ou a escrava preta, se a levou, e pelas frinchas dançam as luzes da palmatória ou do candil, finge o marido que acorda, finge a mulher que o acordou, e se ele pergunta, Então, já sabemos o que ela responderá, que vem morta de canseira, moidinha dos pés, arrastadinha dos joelhos, mas consolada a alma, e diz o misterioso número, Sete igrejas visitei, tão apaixonadamente o disse que ou foi a devoção muita ou muita a falta dela.”
(in op. cit., 43ª edição, cap. III, pág. 31) 

    De novo, com o sublinhado é possível comprovar a coexistência de marcas do discurso do narrador com o discurso da personagem: à subordinação típica do discurso de quem relata ("ela responderá que vem…"), à terceira pessoa usada pelo narrador para se referir ao discurso de uma mulher juntam-se os diminutivos da voz da própria mulher citada ("moidinha" / "arrastadinha"); a enumeração das sequências relativas ao cansaço (também representados na voz e no discurso dela), o segmento “consolada a alma” com duplicidade de leitura - entre o prazer / a satisfação na voz da mulher e/ou a ironia pressentida na posição do narrador face ao relatado / citado. Caso para dizer que a fronteira entre discursos distintos sai esbatida, se não for anulada, como no último aspeto focado.
      Ainda assim, neste último caso, não é o discurso de uma narrativa e de uma narração preteritamente situadas que introduz a voz pressentida da personagem (detetável apenas no primeiro exemplo). Em contrapartida, surge uma presentificação explorada pelo narrador (na sua cumplicidade com o narratário e/ou leitor: "já sabemos") numa estratégia crítica, irónica que junta o coloquialismo da situação e da relação narrador-narratário (no discurso direto assumido pelo primeiro para com o segundo) à reprodução de uma voz da personagem mulher, em situação de produção discursiva distinta (mas recuperada para o discurso do narrador, numa aproximação ao que mais pode ser designado como 'discurso direto livre', pela combinação de referências deíticas diferenciadas: a representada na relação narrador-narratário; a construída para as personagens mulher-marido).

     Exemplos de modalidades e de uma polifonia discursiva, que refletem várias vozes que se misturam, se sobrepõem, compondo um mosaico que o leitor deve observar, ler e atentamente ouvir, numa representação consentânea das potencialidades que o narrador-orador tão bem gere e funcionaliza na arte de contar histórias.

quarta-feira, 4 de junho de 2014

A julgar pelo que está escrito...

     ... a publicidade, mais do que enganosa, é mesmo defeituosa.

     Mensagem de telemóvel: "Às vezes, dá vontade de dar um cachaço a alguém". Acompanhada de um smile, deu para sossegar um pouco, não fosse eu o alvo.
     Continuando a leitura, recebo esta pérola de uma daquelas alunas que ainda fazem acreditar que faço alguma coisa pela escola:

Publicidade no seu pior

      Eu dava "cachaço" e descontava no salário ou no contrato do "responsável irresponsável", que não sabe a diferença entre "experimentaste" (verbo experimentar no pretérito perfeito na segunda pessoa do singular) e uma construção pronominalizada muito inusitada (por o 'tu', no presente, não se experimentar a si mesmo). A terminação verbal do tempo-modo-pessoa-número não se separa da base.
  Sem hipótese de "dar cachaço", já vandalizei a publicidade, por motivo forte e mais do que pedagogicamente justificado.
   
      Não experimentei nem experimento os chocolates da Olá, por terem defeito na publicidade. Cuidado, que o produto - a julgar pelo que está escrito - não é de confiança. A 'Olá' anda com muito fraca qualidade na divulgação dos seus produtos.

terça-feira, 3 de junho de 2014

Depois do paraíso, a magia...

      Cá vai mais uma dos Coldplay, depois dos êxitos de Mylo Xyloto.

      Assim vai a apresentação do primeiro single do novo álbum, intitulado "Ghost Stories". 
      É mágico, no passado e no presente.

Vídeo oficial, dirigido por Jonas Âkerlund e representado pela atriz Ziyi Zhang

         MAGIC

Call it magic
Call it true
I call it magic
When I'm with you
And I just got broken
Broken into two
Still I call it magic
When I'm next to you

And I don't and I don't and I don't and I don't
No, I don't it's true
I don't, no I don't, no I don't, no I don't
Want anybody else but you
I don't, no I don't, no I don't, no I don't
No, I don't it's true
I don't, no I don't, no I don't, no I don't
Want anybody else but you

Call it magic
Cut me into two
And with all your magic
I disappear from view
And I can't get over
Can't get over you
Still I call it magic
Such a precious jewel

And I don't and I don't and I don't and I don't
No, I don't it's true
I don't, no I don't, no I don't, no I don't
Want anybody else but you
I don't, no I don't, no I don't, no I don't
No, I don't it's true
I don't, no I don't, no I don't, no I don't
Want anybody else but you

Want to fall, fall so far
I want to fall, fall so hard
And I call it magic
And I call it true
I call it magic

And if you were to ask me
After all that we've been through
Still believe in magic?
Yes, I do
Of course I do

      À imagem do filme mudo, a preto e branco, cola-se a melodia, por vezes aguda, a que a voz de Chris Martin dá corpo, num "Want anybody else but you" (na possível busca de uma "pomba" e da "paz").

      A letra parece mensagem para uma realidade vivida, nada mágica e pouco cinéfila.

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Realidade... a quanto obrigas!

     É um facto que a realidade está muito longe de ser simples ou favorecedora do que haja simplesmente de bom.

     Assim o propõe o cartoonista americano Bill Watterson numa das vinhetas da sua banda desenhada com as personagens Calvin & Hobbes (o jovem rapaz de seis anos que se faz acompanhar do seu tigre de estimação), numa frase com variedade do português do Brasil.
     Só espero que a minha resposta não esteja a simplificar demasiado... nem a complicar... para ficar pela virtude.

      Q: Boa noite, Vítor.
      Hoje gostaria de lhe pedir uma ajuda em relação à análise sintática da frase " Observar a realidade dos desfavorecidos é um dos temas da sua poesia!" (a propósito do estudo de Cesário Verde). "Observar a realidade dos mais desfavorecidos" é o sujeito da frase, certo? E "dos desfavorecidos" será complemento ou modificador do nome? Parece-me que será modificador restritivo, mas nem todos os colegas concordam.
        Grata pela atenção e um bem-haja por todo o trabalho desenvolvido.

      R: Viva.
      Muito obrigado pelas palavras que me dirige e que, naturalmente, me deixam contente por poder ajudar alguém com estes meus contributos.
    Genericamente, e no que respeita aos complementos de nome, houve já apontamentos que trataram a questão e apontaram para uma tipologia de nomes implicados. O que está em causa é o facto de, similarmente aos verbos, haver nomes que selecionam argumentos (os quais, no sintagma nominal, funcionam como complementos - função sintática interna). Tais nomes apresentam um sentido que implica uma relação com outra entidade – p. ex. ‘amigo / pai / filho / irmão’ (> de alguém); ‘fatia’ (de alguma coisa); ‘autor’ (> de alguma coisa / obra); ‘consequência’ (> de algo). 
    Quanto ao exemplo proposto, começo por confirmar que o segmento ‘Observar a realidade dos mais desfavorecidos’ é efetivamente o sujeito sintático da frase matriz (com a configuração de uma subordinada não finita infinitiva), para o predicado ‘é um dos temas da sua poesia’.
    No interior desse sujeito encontra-se um grupo nominal (‘a realidade dos desfavorecidos’) cujo núcleo (‘realidade’) se encontra expandido pelo segmento ‘dos desfavorecidos’.
    O nome ‘realidade’ não é considerado em nenhuma das tipologias anteriormente referidas. Ainda que não exaustivamente, retomo aqui os casos mais comumente mencionados para nomes que selecionam complementos:
. nomes relacionados com situações eventivas, com participantes (ex.: casamento, chegada, invasão) ou com localização temporal e espacial específica (ex.: boda, concerto, cortejo, doença, espetáculo, evento, férias, tempestade, noite, dia, capital, presidente, rei);
. nomes que denotam estados psicológicos de um experienciador (ex.: alegria, amor, angústia, desejo, fúria, medo , temor):
. nomes de parentesco (ex.: pai, mãe, filho, irmão, tio, avô…);
. nomes respeitantes a relações institucionais ou sociais (ex.: amigo, colega, companheiros, professor, sócio) ou noções relativas ao âmbito de atuação ou de responsabilidade de alguém (ex.: chefe, ministro, porteiro, criado, dono, proprietário);
. nomes associados a representações visuais ou gráficas (ex.: descrição, desenho, fotografia, imagem, quadro, radiografia…);
. nomes que representam obras culturais (ex.: artigo, capítulo, filme, história, livro, ópera, quarteto, relatório, sinfonia, trabalho) associadas a um autor (no papel semântico de agente);
. nomes que denotam relações do tipo parte-todo (ex.: final, início, suplemento, braço, …) ou propriedades de pessoas ou objetos (ex.: altura, conteúdo, contorno, idade, extensão, forma, força, medida, peso, preço).
       Em nenhum destes casos cabe o termo 'realidade'. 
   Mesmo que fosse considerado o cenário de estarmos próximos de uma nominalização de qualidade (também tipicamente orientado para a complementação de nomes, construídos a partir de um adjetivo: ‘real’ > realidade), tal não se efetiva segundo o sentido transmitido pelo enunciado proposto. O segmento ‘a realidade dos desfavorecidos’ não significa necessariamente que ‘Os desfavorecidos são reais’ (tal como em ‘a beleza da jovem’, que apresenta um nome expandido por um complemento, por o núcleo nominal se associar ao adjetivo ‘bela’ e permitir a paráfrase ‘A jovem é bela’); antes, que os desfavorecidos apresentam ou vivem uma realidade com um determinado conjunto de características.
     Assim, ‘realidade’ é um nome seguido de um modificador (grupo preposicional) que o restringe em termos de significado, mas que não está nele implicado em termos de estrutura argumental.

     E depois da realidade (ainda por cima 'dos desfavorecidos'), prefiro, à moda de Cesário, enveredar pelo caminho da transfiguração do real... pelas sugestões e alternativas que esta possa trazer (desejavelmente menos desfavorecida).