quarta-feira, 16 de maio de 2018

Só modificadores...!

    Há que ter atenção ao nível!

    E este pode ser encontrado em função do foco daquilo que é modificado.

    Q: Olá, Vítor! Desculpa estar a incomodar-te, mas concordas com a classificação de complemento do nome para o constituinte "graças ao degelo do Ártico", em "Fósseis encontrados na Gronelândia graças ao degelo do Ártico"?

      R: Olá. 
    Não posso concordar, mesmo que a sequência em análise fosse apenas o segmento 'degelo do Ártico'. Sendo 'degelo' uma forma nominal decorrente do verbo 'degelar' (verbo tipicamente intransitivo), não há lugar a complemento do nome; portanto, a função sintática de 'do Ártico' é a de modificador do nome (por se tratar de uma expansão do nome 'degelo') restritivo (limitando a referência de 'degelo' apenas ao contexto 'do Ártico'; não assinalado por vírgula).
   A sequência proposta é representativa de enunciados típicos dos títulos (oração não finita participial), numa redução do que deveria ser uma construção frásica passiva: "Fósseis (foram) encontrados na Gronelândia graças ao degelo do Ártico". Assim, "graças ao degelo do Ártico" (que eu faria anteceder de vírgula, já agora) funciona como modificador do grupo verbal (ou do predicado). Trata-se de uma sequência de lógica causal que faz parte do predicado ("[foram] encontrados na Gronelândia, graças ao degelo do Ártico"); portanto, um modificador do grupo verbal. 
       Se este último modificador se analisa ao nível superior da frase, relembro que o modificador do nome mencionado no primeiro parágrafo desta resposta é função sintática analisada a nível interno de um grupo nominal (que teria 'degelo' como núcleo) - ou seja, não ao nível da frase matriz, mas de um elemento que, a um segundo nível, teria na sua dependência uma expansão especificativa.


     Feito o esclarecimento, é caso para dizer que quem se mete com modificadores chama para si algumas "dores" (ara complicar ou "doer" mais, só faltava tratar também os modificadores da frase).

terça-feira, 15 de maio de 2018

Estratégias eficazes

      A propósito de um artigo que serve para reflexão na formação docente.

     Refiro-me a uma recensão sobre uma vasta literatura acerca do ensino da leitura, da escrita e do cálculo matemático: "Quelles sont les stratégies d'enseignement efficaces favorisant les apprentissages fondamentaux auprès des élèves en difficulté de niveau élémentaire? Résultats d'une méga-analyse". 
     Publicado em 2010, na Revue de Recherche Apliquée Sur l'Apprentissage, vol. 3, artigo 1 (páginas 1 a 35), é o resultado de uma pesquisa e investigação desenvolvidas com base em onze meta-análises editadas na década inicial do século XXI, sobre o tema. Steve Bissonnette, professor do Departamento de Psicoeducação e Psicologia da Universidade do Québec; Mario Richard, professor da Tele-universidade do Québec; Clermont Gauthier, titular da cadeira de investigação no Canadá sobre a formação no ensino, na Universidade de Laval; Carl Bouchard, doutorado em Psicologia  na Universidade de Montréal são nomes com obra sustentada no campo da psicologia, da educação, da psicologia orientados para o estudo da eficácia e acabaram por concentrar um variedade de dados relevante para a análise do contexto educativo do Canadá, em particular, e da América do Norte, em geral (dadas as similitudes atestadas e citadas por relatórios consultados), no encalço de estratégias eficazes para o ensino de matérias essenciais para um grupo-foco (alunos com dificuldades no nível primário).
      Entre as várias conclusões - centradas em métodos de ensino diferenciados (instrução direta, ensino de estratégias, combinação dos dois modelos anteriores, outros), em estratégias ou intervenções diversificadas (ensino explícito de conteúdos, conceitos / procedimentos; ensino recíproco, com estratégias de grupo ou entre pares; percurso de aprendizagem apoiado na autoquestionação, aprendizagem mediada orientada, ensino assistido por computador, comunicação de indicadores específicos de desempenho aos professores e aos alunos; comunicação de informações específicas aos pais sobre informações precisas associadas ao sucesso dos educandos) -, sublinham-se algumas das mais significativas e concordantes, independentemente das três competências visadas:

. o ensino direto e o centrado na autoquestionação são os que se revelam mais eficazes no contexto de ensino-aprendizagem em estudo, mais do que a aprendizagem mediada e guiada;
. o ensino apoiado pelo computador revela-se menos eficaz do que o de tipo presencial;
. as novas abordagens pedagógicas como a aprendizagem guiada não apontam para estratégias de ensino que melhorem o rendimento dos alunos que apresentam dificuldades de aprendizagem;
. o ensino recíproco é moderadamente eficaz, no caso do cálculo matemático, quando se tem em vista a melhoria dos desempenhos dos alunos em dificuldade;
. o ensino explícito favorece a aprendizagem de diferentes componentes implicadas no processo de leitura (estratégias metacognitivas, consciência fonémica, reconhecimento lexical, compreensão de textos, decifração da mensagem), bem como as relacionadas com o processo de escrita (planificação, textualização, revisão e tipologia textual);
. as modalidades pedagógicas que mais influenciam o rendimento dos alunos são o ensino explícito e o ensino recíproco.

      Quando paradoxalmente muitas reformas educativas privilegiam ou apontam para abordagens pedagógicas bem distintas do concluído por estes investigadores, os mais de trezentos trabalhos de investigação levados a cabo num período de dez anos - num contexto de diferenciação e multiculturalidade evidentes -, cruzam-se convergentemente com cerca de quarenta anos de literatura a espelhar um estado de coisas com constâncias muito representativas.


     Retirar-se-ão daqui ilações para as práticas e os desempenhos profissionais docentes, por certo, nomeadamente quando um relatório canadiano publicado em 2001 se posiciona favoravelmente face à universalidade de conclusões: «Les pratiques employées dans les écoles efficaces canadiennes sont semblables à celles répertoriées dans la littérature internationale sur l’efficacité des écoles» (Henchey, N., Dunnigan, M., Gardner, A., Lessard, C., Muhtadi, N., Raham, H. et Violoto, C. (2001 - p. ii) - Schools that make a difference: Final report twelve canadian secondary schools in low-income settings. Kelowna, B.C.: Society for the Advancement of Excellence in Education, (SAee)).
         Sem excluir a posição de que, na educação, para situações excecionais uma resposta excecional pode conduzir para a solução de um problema, não nego que algumas constâncias, regularidades são necessárias, seja para um docente poder agir perante a diversidade com que se depara seja para os próprios alunos poderem integrar-se, socializar-se com conhecimentos e competências reconhecidos como fulcrais pela sociedade. Uma generalização, por certo, não pode resultar daqui: os alunos que não são contemplados pelo estudo focado podem já ter uma estruturação que não requeira modalidades pedagógicas tão diretivas e explícitas.

       Entre "Todos iguais, todos diferentes", cabe ao professor avaliar a situação que terá de ajustar às condições que lhe são facultadas para trabalhar. E estas últimas nem sempre se coadunam com os requisitos que os modelos pedagógicas, os métodos de ensino, as estratégias e as formas de intervenção preconizam.

segunda-feira, 14 de maio de 2018

Complementos...

       ... não! Sujeitos.

        Uma questão a dirimir, por certo, a bem de quem trabalha com funções sintáticas.

       Q: Olá, Vítor. Na frase "É bom que faças o que te mandam" o sublinhado é um exemplo de complemento do adjetivo? Quando puderes, dá-me a tua opinião. Obrigada.

         R: Viva. Perante frase com conteúdo tão "autoritário", vou começar por contrariar o pressuposto da interrogação.
          Não se trata de uma questão de opinião: o sublinha-do corresponde ao sujeito sintático da frase (um dos casos de sujeito invertido) para o predicado 'É bom'. As frases que iniciam com a construção 'Verbo Ser + Adjetivo' (ex.: É importante... / São fantásticas... / É horrível... / São discutíveis...) prosseguem habitualmente com o sujeito, conforme se evidencia tanto pela concordância sintática como pela reconstrução com 'algo' ou com pronominalização ('É horrível não ter que comer' > ALGO [não ter que comer] é horrível; 'São discutíveis as decisões tomadas por força' > ELAS [as decisões tomadas por força] são discutíveis).
        A utilização de um complemento do adjetivo ocorre nos casos em que este último - formado ou associado a um verbo transitivo (a requerer complemento) - adquire o mesmo comportamento desse verbo (ex.: inscrito/a > alguém inscreve alguma coisa em algum local; aborrecido/a > alguém se aborrece com algo; apaixonado/a > alguém se apaixona por alguém / por algo; interessado/a > alguém interessa-se em/por algo / alguém).
        No caso em concreto, nem 'bom' é um destes exemplos adjetivais nem a subordinada substantiva completiva ('que faças o que te mandam') é forma de complementação. Ambos são casos de configuração sintática ao nível da frase-matriz (contrariamente ao complemento do adjetivo, que é uma função sintática interna, de segundo nível, dependente do adjetivo e da função por este desempenhada).

      Há sujeitos que fecham as frases. Dizem-se invertidos por não obedeceram à ordem padronizada, direta, natural, canónica do português (SVO).

sábado, 12 de maio de 2018

Quem me dera...

    Não se trata da expressão de um desejo pessoal; antes o refrão de uma canção.

   De tanto nos habituar a qualidade, a surpresa não deixa de chegar sempre que a voz se faz ouvir - é o caso de Mariza, tanto na expressão de poetas (inclusive, a de Pessoa) como na de outros escritores de cantigas, tão ao jeito de um Português nacional quanto ao de um idioma variado que se projeta no mundo. É o nosso Fado!

Vídeo oficial do fado "Quem me dera", voz de Mariza e letra de Matias Damásio

       QUEM ME DERA

Que mais tem de acontecer no mundo
Para inverter o teu coração pra mim
Que quantidade de lágrimas devo deixar cair
Que flor tem que nascer
Para ganhar o teu amor

Por esse amor meu Deus
Eu faço tudo
Declamo os poemas mais lindos do universo
A ver se te convenço
Que a minha alma nasceu para ti

Será preciso um milagre
Para que o meu coração se alegre
Juro: não vou desistir
Faça chuva faça sol
Porque eu preciso de ti para seguir

Quem me dera
Abraçar-te no outono, verão e primavera,
Quiçá viver além uma quimera
Herdar a sorte e ganhar teu coração

Será preciso uma tempestade
Para perceberes que o meu amor é de verdade
Te procuro nos outdoors da cidade, nas luzes dos faróis
Nos meros mortais como nós
O meu amor é puro... é tão grande e resistente como embondeiro
Por ti eu vou onde nunca iria
Por ti eu sou o que nunca seria

Eu preciso de um milagre
Para que o meu coração se alegre
Juro: não vou desistir
Faça chuva faça sol
Porque eu preciso de ti para viver

    À qualidade interpretativa juntam-se a letra, a composição musical, as imprevisíveis harmonias que tocam quem ouve. Matias Damásio escreveu, Mariza canta e nós escutamos, embalados entre sonhos, quimeras, utopias, esperanças face à vida e ao amor que alimentem / alimentam a nossa existência. 

     Não sei se estranha, porque, comigo, entranhou logo, assim que foi escutada.

quinta-feira, 10 de maio de 2018

O Dia da Queima dos Livros

      Há cerca de um ano percorri um dos locais fatídicos na zona que foi Berlim comunista.

      Há oitenta e cinco anos desapareciam aí os livros que se revelavam opositores ao espírito alemão nazi. Corria o ano de 1933 e, em Berlim, acontecia a queima dos livros de autores ditos 'não-alemães' (ainda que alguns deles o fossem), levada a cabo pela Liga de Estudantes Alemães Nazis, em OpernPlatz (hoje BebelPlatz). 
     Tratou-se de uma campanha de propaganda, repetida em muitas cidades alemãs, contra os que se revelavam contra o espírito alemão (os chamados "Undeutsch"). Nomes como os de Sigmund Freud, Karl Marx, Albert Einstein, Franz Kafka, Bertolt Brecht, Walter Benjamin, Marcel Proust, Emile Zola, Máximo Gorki e Ernest Hemingway figuravam entre os que tinham obras queimadas. Joseph Goebbels, ministro da propaganda nazi, assumiu que, a partir de então, nasceria o novo homem alemão, livre da influência e do intelectualismo judaicos. Por ironia, o país que tinha inventado a prensa tipográfica móvel há cerca de meio milénio assistia a uma tragédia cultural, provocada pelo nacionalismo irracional, destruidor de memórias, ideias, histórias. 

Imagem alusiva à queima de livros (Bücherverbrennung)

    Trinta e três anos depois (1966), o filme Grau de Destruição (no Brasil, Fahrenheit 451) recuperava o tópico, ao adaptar o romance homónimo de Ray Bradbury, sob a direção de François Truffaut, e ao mostrar como um regime totalitário proibia os livros e toda a forma de escrita, acusando-os de tornar as pessoas descontentes e não produtivas (a resistência ao regime era apenas feita na terra dos homens-livro, uma comunidade de pessoas que destruía os livros depois de os memorizar; a perseguição era inevitável para quem era apanhado na posse de um, mas o propósito de o decorar era o de o republicar quando não fossem mais proibidos).

Excerto fílmico de Grau de Destruição (ou Fahrenheit 41), de 1966

     Atualmente, frente ao prédio da Faculdade de Direito da Universidade de Humboldt fica o chamado Book Burning Memorial: uma abertura de vidro colocada no chão da praça, a permitir aos transeuntes a visão, no subsolo, de uma sala com uma grande estante de livros branca, vazia. Recorda-se, assim, o dia em que, durante a ocupação nazi, 20.000 livros foram queimados, num só dia, numa pira que consumiu obras de cientistas, filósofos, escritores e pensadores de renome. Por extensão, a ausência dos livros simboliza a falta dos milhões mortos pelo nazismo, para além dos perseguidos, torturados e humilhados por pensa-rem de modo distinto.
    Organizada pelas estruturas governamen-tais nazis e pelo Comité Geral dos Estudantes da União Nacional-Socialis-ta,  a "Queima dos Livros" foi acompanhada por reitores, professores universitários, líderes estudantis, mais os altos representantes de Hitler. Mais de trinta cidades universitárias alemãs colaboraram e fizeram estender a campanha a outros pontos do país, graças à divulgação feita pela rádio, pelas telas de várias salas de cinema e pela cobertura de imprensa. Os dias seguintes assistiram à criação de outras fogueiras, alimentadas pelos livros e documentos escritos que os soldados nazi retiraram, à força, de casas, livrarias e bibliotecas.

    Em tempos de fraca memória, interessa relembrar os perigos do fundamentalismo, dos nacionalismos exagerados, da miséria humana e dos horrores que a História deu a conhecer e que o presente teima em fazer persistir. Os livros também cumprem esse papel (que o diga Saramago, com o seu O Ano da Morte de Ricardo Reis).

terça-feira, 8 de maio de 2018

Voz, melodia e força... vencedoras?!

    Espetáculo internacional em Portugal. É a Eurovisão na canção. Em Lisboa.

    Depois da vitória de Salvador Sobral em 2017, a capital portuguesa recebe o certame musical de maior projeção musical no mundo. Realizada a primeira semifinal, diria que se trata de uma realização televisiva que não fica atrás de produções de anos anteriores - balanço de um show que bem podia ser o da final do festival. Um evento que abre o país ao mundo e a uma audiência à escala global.
     Fica o registo da que podia ser a canção vencedora:

A representação da Áustria na primeira semifinal da Eurovisão (RTP1)

      NOBODY BUT YOU

Lord I’m gonna get so high tonight
I’m gonna let the floodgates open wide
I’m in open water
This is what I need
And though I try to get you off my mind

And I get no sleep
I’m in too deep
I can’t let you leave

It wouldn’t be right letting you go running away from love
Ain’t nobody but you I can hold onto
So am I wrong giving my all making you stay tonight?
Ain’t nobody but you I can hold onto

Lord, I’m gonna bring you back tonight

Oh you’re running circles round my mind
After your words have been my bible
How could I search for someone new?
When I really want you by my side

And I get no sleep
I’m in too deep
I can’t let you leave

It wouldn’t be right letting you go running away from love
Ain’t nobody but you I can hold onto
So am I wrong giving my all making you stay tonight?
Ain’t nobody but you I can hold onto

Don’t make me tear my heart out
I’m shaking till I fall down
Don’t make me tear my heart out
Don’t make me tear my heart out
I’m shaking till I fall down
Don’t make me tear my heart out

It wouldn’t be right letting you go running away
Ain’t nobody but you I can hold onto
So am I wrong giving my all making you stay tonight?
Ain’t nobody but you I can hold onto
It wouldn’t be right letting you go running away from love
Ain’t nobody but you I can hold onto
Ain’t nobody but you


    Uma entrada musical suave (em piano) a deixar ouvir uma voz grave (a de Cesár Sampson) para uma melodia rythm & blues que cresce, faz vibrar, num enquadramento cénico e de efeito televisivos surpreendente. No apoio vocal, há uma voz portuguesa (a de Ricardo Soler) a marcar a sonoridade do gospel, do soul, junto de outras vocalistas femininas.
    O resultado é uma música de força negra, de refrão contagiante e de letra que, por mais comum no tema, sublinha a persistência no amor.

    Não pediria mais para ser espetáculo. Sem necessidade de excentricidades, revirar de olhos, cacarejos ou uma "chicken dance" para chamar a atenção, este é um exemplo digno de vencedor. Se não o for, será música que fica (como muitas outras que não chegaram a vencer e marcaram a diferença).