quarta-feira, 30 de novembro de 2011

"Não evoluo; viajo"

    Estas as palavras de quem fisicamente poucas vezes fez de viajante, com exceção desse percurso que o levou de Lisboa até Durban e o fez regressar à cidade que disse ser de Ulisses.

    Deste dia já se fez nota neste blogue, por várias vezes.
   O dia fecha o mês e, há setenta e seis anos, assistiu ao fim de uma vida (ou várias, para alguém que dizia que não sabia quantas almas tinha).
    No drama de gente que representou e nas palavras de Bernardo Soares, foi a "cena viva onde passam vários actores representando várias peças". Aí fez muitas viagens, sempre na procura da ideia, do ideal, da verdade suprema que o libertava, que o fazia sentir-se um aspirante, solto face a um mundo real, sensível que o limitava, o enleava.
     Nascido no dia de Santo António (que fora Fernando de Bolhões) e no ano em que Eça de Queirós via publicado o romance Os Maias, Fernando António Pessoa Nogueira viajou para lá desta vida ao fim de quarenta e sete anos.
  Tornou-nos herdeiros de uma obra imensa, na qualidade e na quantidade; no conhecido e no desconhecido. Foi articulista, ensaísta, poeta, dramaturgo, publicitário, homem de sensibilidade múltipla, interventiva e comprometida com o avanço cultural de um país, capaz de dar sinais de modernidade, de fragmentação e desassossego naquilo que ainda era pautado pela tradição.
      "Minha pátria é a língua portuguesa", dizia, no que de mais inteligível e espiritual isso possa representar. 

"Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie - nem sequer mental ou de sonho -, transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se dizem bem."

     Livro do desassossego, de Bernardo Soares 
(semi-heterónimo de Pessoa)

     Cumpriu-se a etapa de uma viagem, aquela que se vê sempre repetida com a descoberta dos percursos pessoanos (re)construidos aos olhos de novos leitores. 

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Questões do outro lado do oceano (VI)

     Mais uma questão, mais um caso dito polémico ou estranho.

   Q: Em "Viver bem a vida é amar bem as mulheres", há quantas orações; qual seria a classificação delas?

   R: A frase apresentada contém três orações: uma, é a da frase matriz, nuclear, associada à predicação de dois termos (X é Y). Ora acontece que um dos termos (X) é constituído por uma segunda oração e o outro (Y) por uma terceira oração.
    'Viver bem a vida', segmento assumido como sujeito sintático da frase, apresenta a configuração de uma oração subordinada não finita infinitiva; o mesmo sucede com 'amar bem as mulheres', na posição de predicativo do sujeito.
    Esquematicamente, pode representar-se essa construção frásica da seguinte forma:


    Ao verbo copulativo 'ser' (o da frase matriz) juntam-se os verbos principais 'viver' e 'amar' (subordinados, relativamente ao elemento subordinante que a predicação de 'ser' constitui).

     Uma frase, três orações - um caso em que o tamanho nada diz da complexidade do caso.

Eunice Muñoz - a verdade da representação.

     Um grande gesto para não menor pessoa.

     A notícia da atribuição, hoje, da Grã Cruz da Ordem do Infante à atriz Eunice Muñoz merece o aplauso que tanta vez acompanhou aquela que faz setenta anos de carreira aos oitenta e três de vida.
     Entre teatro, cinema e televisão, pode dizer-se que é toda uma vida dedicada à arte de um fingimento tão singular quanto irrepetível. 
     Assim se premeiam os papéis da mulher, da mãe, da avó no palco da vida, bem como os desempenhados, com a mestria de uma artista de renome, nessa arte de autores como Eurípedes, Molière, Shakespeare, Pirandello, Racine, Tchekov, Tennessee Williams, Jean Cocteau; Garrett, Bernardo Santareno, La Féria. Com todos eles, a atriz fez carreira, e da melhor.
      Assisti já a dois espetáculos por ela representados: Dúvida (2007), O Ano do Pensamento Mágico (2009). De ambos saí com a sensação de andar nas nuvens, como se o lugar dela fosse o céu que as acolhe.
      Na televisão, as telenovelas não fazem desmerecer o valor que tem, bastando para tanto relembrar as figuras de proa da Dona Benta (em A Banqueira do Povo - 1993), de Maria Sá Couto (em Todo o Tempo do Mundo - 1999), de Guadalupe Lampreia (em Mistura Fina - 2004); ou a simples cigana que surge na adaptação do romance de Miguel de Sousa Tavares, Equador, a uma série televisiva (2008).
       Ficam por ora as palavras de um poeta (Eugénio de Andrade) na voz da homenageada:



      Para ambos os casos, que se levante o público e bata palmas a uma GRANDE SENHORA, uma das poucas referências vivas que, felizmente, Portugal tem nestes tempos tão necessitados delas.

domingo, 27 de novembro de 2011

Mais um português do e no mundo

       Declarado hoje, pela UNESCO, em Bali (Indonésia), como Património Imaterial da Humanidade, o fado é mais um exemplo do contributo idiossincrásico português; uma marca da voz, da música e das vivências humanas para o mundo.

    No VI Comité Intergovernamental da UNESCO, afirmou-se mais um sinal português composto de universalidade, pelo cruzamento com outras culturas; pelo romantismo que traz das suas origens ao sentir que faz da vida uma realidade sempre única, sensível, singular.
   A consagração da música, de um legado cultural, de um registo emotivo distribuído no tempo (e no espaço) cumpriu-se, depois de já a ter aqui mencionado.
     O nosso fado é do mundo.
     Vida, voz - poesia, som e fado do mundo.


      Não sei se é 'fatum' nacional viver tanto quanto o necessário para alimentar este género musical; porém, se nele se afirma algum do nosso papel no mundo, que se cultive a música, a poesia, a voz capazes de projetar o que há de mais tradicional e marinheiro ao mais corrido, vadio, boémio e brejeiro, para não falar do acadé-mico (que não foi contemplado, por ser indicador de uma outra candidatura a património mundial: a da universidade de Coimbra) e inovador no que a vida propõe de mais intenso.
O Fado
Quadro de José Malhoa
(1910)

      Canção da vida, da emoção, de perdas e ganhos,da alegria e da sua intensa negação, nela há prisão e libertação - solidão, saudade, nostalgia, ciúme; mágoas passadas e do presente; inspiração para a esperança e o futuro.

sábado, 26 de novembro de 2011

Mar de raios

     O dia foi de trabalho, depois de uma noite em claro e com o peso dos olhos que teimavam em fechar.

     Ainda houve tempo para ver o mar, a praia, o sol, até que se retomou o trabalho que não para.


Depois da noite
que se estendeu pela manhã;
depois da poesia e da doçura
que acerejaram um bolo
feito da grama
que nenhuma culinária deu;
depois do tempo e do encontro
com cheiro e sabor a café,
a partilha, a diálogo com pitadas de saber;
depois da sala tornada rua,
com ar livre, em movimento
a refrescar os rostos,
os ânimos, os corpos
(ansiosos de descanso
num fim de semana
encurtado,
reduzido nas horas,
preenchido por muitos instantes),
um mar de raios
compôs o sol,
que iluminou uma tarde
cuja luz
tinha o brilho
do ser e do sentir
a irradiar.

Chegou então um outro mar,
num vai e vem barrado pela praia,
pela areia alteada por um sopro suave 
que disfarçava as pegadas
e os destroços de um naufrágio
vindos de uma tempestade
só na terra acontecido.

No fim,
em plena tarde e
com a despedida,
regressou a noite...
sem escuro, sem estrelas, sem luar;
só o sol
numa estranha luz,
que se dissipava...
até que se apagou.

       Mais um sábado, de descanso para uns; de Saturno (esse titã, filho do Céu e da Terra, que mutilou o pai) para outros.

       E houve uma luz especial durante o dia, que se apagou; mas existiu.

domingo, 13 de novembro de 2011

O dia deu em chuva

     Fica o registo de que o dia deu em chuva.

     E, mesmo assim, foi dia para se viver (bem).

            DOMINGO DE CHUVA

     O domingo deu em chuva.
     Depois da noite e do vento quentes,
     veio um dia fechado, dizem
     - sem sol, de céu carregado, com chuva,
     mas aberto ao lavar da alma.
     
     Não era possível falarmos.
     Restava-nos ouvir o embate 
     duro e diluviano da chuva.
     Seguimos... por retas e curvas.
     Cumprimos o trajeto de um bom domingo,
     aguado, relampejado, trovejado...
     entre montes veiados de caminhos,

     E assim, nas horas partilhadas,

     provámos que o tempo não faz o dia.

     Na água luzente com trovão molhado,
     cumpriu-se a rota, rumo à alegria.

     Foi domingo.
     Seria fechado?
     Esteve de chuva...


     Este foi o balanço de um dia que quase tudo teve no que nunca se desejou.

    Para os tristes dias soalheiros, há sempre aqueles outros que, entre as lágrimas da alma e as do céu, recebem algum do sal da vida para o destempero dos tempos. Talvez por isso o heterónimo pessoano Alberto Caeiro veja a beleza que um dia de chuva tem, tal como um dia de sol.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Ao que os alunos me obrigam...

    A bem de quem queira saber, cá vai a resolução de um (muito) pequeno trabalhinho.

    Em véspera de teste, as dúvidas são imensas. Surgem exemplos tão complicados, a pedido dos alunos, que um professor tem que responder à letra. Depois de uma proposta de frase com três níveis de análise (a propósito de funções internas), eu tinha que me impor: trabalho prático com frases "torcidas", "torcidinhas", "torcidíssimas".
     Foi vê-los a mostrar o que podiam e, às vezes, o que não podiam. O certo é que não largaram. O problema foi a campainha, que concluiu o tempo de aula. Contudo, houve uns resistentes que aproveitaram a falta de uma professora no bloco seguinte, para desfazer o nó.
    Lá vieram os resultados, depois de muito suor, para duas frases a analisar sintaticamente.

      Primeira frase: 'Os alunos, ao estudarem Cesário Verde, não deixam de trabalhar matéria fundamental na Língua Portuguesa'
       i) Sujeito: 'Os alunos' (>Eles)
   ii) Predicado: 'ao estudarem Cesário Verde, não deixam de trabalhar matéria fundamental na Língua Portuguesa'
      iii) Modificador do predicado: 'ao estudarem Cesário Verde'
     iv) Complemento direto: matéria fundamental na Língua Portuguesa (na continuidade de um complexo verbal - 'não deixam de trabalhar X' - que podia apresentar a seguinte pronominalização do CD: 'não deixam de a trabalhar'
     Houve ainda quem quisesse saber como classificar a construção do modificador: uns avançaram que se tratava de uma subordinada não finita infinitiva (certo); outros acrescentaram que era adverbial (também); por fim, pedi que dissessem o tipo de adverbial. E aí lá pensaram mais um pouco; pedi para transformarem por uma expressão equivalente e lá vieram os 'enquanto estudam Cesário' e 'quando estudam Cesário'; lá chegou, por fim, a subordinada adverbial temporal. Ufa!

    Segunda frase: 'Por mais que se trabalhe, há de ficar sempre a sensação de que a língua portuguesa é muito difícil'
     i) Sujeito: A sensação de que a língua portuguesa é muito difícil (invertido, ora pois... e é bom de ver que a ordem normal seria 'Por mais que se trabalhe, a sensação de que a língua portuguesa é muito difícil há de ficar sempre' e que a pronominalização daria 'Por mais que se trabalhe, ela há de sempre ficar'). 
     ii) Predicado: há de ficar sempre
     iii) Modificador da frase (por não admitir o teste da interrogativa nem o da negativa: *É por mais que se trabalhe que há de ficar sempre...? / *Não por mais que se trabalhe, há de ficar sempre...): Por mais que se trabalhe,
     Então, alguém pergunta: não há um predicativo do sujeito nesta frase?
    Há, sim senhor, mas como função INTERNA, numa classificação de segundo nível. O sujeito da frase é representativo de um caso que incorpora uma sequência frásica na expansão do nome 'sensação'. Ora nessa expansão há, a um segundo nível de análise, um sujeito e um predicado subordinados (sujeito: a língua portuguesa; predicado: é muito difícil). É neste predicado subordinado que se encontra o predicativo do sujeito (também subordinado), depois do verbo copulativo 'ser'.
    Como há alunos que querem saber tudo (e ainda bem!), quiseram classificar a construção do modificador.  Viu-se que era uma subordinada adverbial finita que, em termos lógicos, se identificava com uma concessiva (depois de terem substituído o 'por mais que se trabalhe' por 'ainda que se trabalhe', 'mesmo que se trabalhe', 'embora se trabalhe'...
      Segundo Ufa!

     E foi assim que, depois disto, tive vontade de tirar férias. Trabalhar cansa! Só os alunos para me obrigarem a trabalhar tanto.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Sem pipocas e com muita ilusão

      De tanto me falarem dele, decidi vê-lo.

      Refiro-me ao filme Meia-noite em Paris, uma comédia realizada por Woody Allen.
    Trata-se de um verdadeiro postal de visita à cidade do amor e da sedução, com o qual o espectador é aliciado pela cor atrativa da beleza da manhã à magia da noite; pelo som nostálgico que, por mais ouvido, não deixa de ser composto de ilusão.

Trailer do filme de Woody Allen (2011)

      De ilusão também vive a personagem principal da história: um jovem guionista e roteirista de sucesso em Hollywood (Gil Pendler, interpretado por Owen Wilson) que ambiciona ficar na cidade parisiense, escrever o seu primeiro romance, cruzar-se com o(s) tempo(s) do passado no presente.
     A suavidade com que se sai do filme é a mesma com que a película termina, na fantasia de um amor banhado a gotas de chuva e ruas molhadas (depois de um noivado acabado, com tudo o que de convencional tinha para poder dar certo, mas sem a magia que só uma paixão pode ter).
    É um filme de balanço de vida; de reconhecimento do poder cultural da meia-noite, das badaladas, da década ouro na cultura francesa (1920). Reveem-se o 'Tanque de Nenúfares, de Monet; o 'Pensador' de Rodin; o cineasta francês Jean Cocteau; a animação musical de Cole Porter, a tocar piano e o 'Let's do it - Let´s fall in love'; as escritas, as vidas e os gostos de Scott e Zelda Fitzgerald, de Ernest Hemingway, de James Joyce, de T.S. Eliot; a sensualidade de Adriana, amante de Picasso e ex de Modigliani e Braque; os rinocerontes de Dalí e os filmes surrealistas de Luis Buñuel; esse cultivador de imagens que foi Man Ray.
     Tudo isto se vê (e por vezes se antecipa) ao longo do tempo do filme; do tempo feito da ilusão cinéfila e daquela visão romântica que encara o passado como o bem perdido face ao incompreendido presente  - ideia relativizada, e bem, no filme, para que se releve o instante de cada existência -; do tempo de uma história a cruzar referências culturais com sinais de contemporaneidade.
    Um filme-viagem feito com os ingredientes da emoção e uma nota de revisão de experiência(s) de vida - da viagem que não é independente da vontade de ilusão; da viagem que se faz num presente e que também reflete muito de passado (pelo que o presente tem de reconhecível nas expectativas criadas e nos conhecimentos prévios que se querem recuperados ao calcorrear os tempos e lugares visitados).

     Não foram necessárias pipocas, porque o filme bastou para prender. Quando um filme cheira e/ou sabe a pipocas ou a chocolate não se sente a emoção de Adriana, nem se antevê o que Woody Allen projetou. É como se o tempo pudesse ser por nós controlado (ainda que, em certa medida, o possa ser pelo que nele depositamos).

Balada de luz, azul e mar

      Mais um exemplo musical das terras de Espanha.

      Na voz de Pablo Alborán, uma declaração de amor feita de luz, azul e mar.



SOLAMENTE TÚ

Regálame tu risa,
enseñame a sonar
con solo una caricia
me pierdo en este mar
Regálame tu estrella,
la que ilumina esta noche
llena de paz y de armonía,
y te entregaré mi vida

Haces que mi cielo
vuelva a tener ese azul,
pintas de colores
mis mañanas solo tú
navego entre las olas de tu voz
y tú, y tú, y tú, y solamente tú
haces que mi alma se despierte con tu luz
y tú, y tú, y tú

Enseña tus heridas y así la curará
que sepa el mundo entero
que tu voz guarda un secreto
no menciones tu nombre que en el firmamento
se mueren de celos
tus ojos son destellos
tu garganta es un misterio

No menciones tu nombre que en el firmamento
se mueren de celos
tus ojos son destellos
tu garganta es un misterio


     Com "Solamente tu", o cantor projeta-se em Portugal, depois de ter sido considerado uma revelação, em 2010, por terras espanholas. Mais um exemplo divulgado pelas redes sociais (Youtube) e que chamou a atenção de pessoas que o souberam acompanhar na sua afirmação musical.

     Uma letra, uma melodia, uma voz a navegarem no mar do amor.