quinta-feira, 29 de abril de 2010

Morfologia a quanto obrigas...

     Voltemos às dúvidas, que andavam um tanto arredadas deste espaço (como dizem os meus alunos, "Professor, tenho uma dúvida!"; e eu respondo "Felicidade a tua, pois eu tenho muitas!").

    Q: Partindo do exemplo "Quando chegar a casa, vou estudar", tenho lido em vários sítios que o verbo 'chegar' ora está no infinitivo ora está no futuro do conjuntivo. É indiferente esta classificação? Posso aceitar qualquer uma delas? Na verdade a terminação parece ser a do infinitivo. Como posso explicar a diferença?

    R: No exemplo que me dá, vejo o infinitivo na forma do verbo 'estudar', na medida em que o complexo verbal associado ao futuro próximo ("vou estudar") se configura do seguinte modo: 'verbo auxiliar + verbo principal (infinitivo)'.
    Já quanto ao verbo 'chegar', apesar da aparente semelhança formal (em termos morfológicos) entre futuro do conjuntivo e infinitivo, chega-se à classificação de futuro do conjuntivo pelo seguinte raciocínio: numa eventual manipulação / transformação da frase, seria possível ver a co-ocorrência de 'quando' com verbos que admitem a forma do futuro do conjuntivo e não a de infinitivo. Assim, seria possível ter "Quando estiver em casa vou estudar" e não "*Quando estar em casa vou estudar".
     Construam-se ainda frases que tenham o articulador 'quando' seguido dos verbos 'fazer', 'dizer', 'trazer', 'querer', 'ter', 'pôr', 'poder', e seguramente não serão estas formas infinitivas que aparecerão; serão utilizadas as que correspondem ao futuro do conjuntivo (como é o caso de 'fizer', 'disser', 'trouxer', 'quiser', 'tiver', 'puser', 'puder', respectivamente).

    Ora cá está um exemplo de como a morfossintaxe, além de alguns contributos de ordem semântica, pode marcar diferença no modo de ver a forma das palavras.

domingo, 25 de abril de 2010

Abril precisa de açúcar...

    Em feriado celebrado em pleno domingo (coisa tão escusada!), os discursos são velhos, as ideias estão gastas, o tempo vai apagando as conquistas e os ideais estão enevoada e silenciosamente em crise. Sinais de algum desmaio...

     Não desmerecendo o exemplo que muitos deram neste dia, em 1974, 36 anos depois as palavras de Sophia mantêm o sentido que a actualidade impõe:

"Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo."

                                    (in O Nome das Coisas, 1977)

     Nessa madrugada já distante, conquistou-se a liberdade, desde aí também ameaçada. Hoje, entre silêncios que se geram, injustiças criadas e defendidas, precariedade e desequilíbrios socialmente desgastantes, orientações políticas inconsistentes e pautadas por constantes e sucessivos dissensos, resta sempre a hipótese de dar voz ao descontentamento... muitas vezes qual farinha colocada em saco roto. A sensação de esgotamento faz-se sentir e um sentido de vazio cresce. É preciso que a noite saiba que tem de dar lugar ao dia.

      Peço um café.
  Dão-me um pacote de açúcar (fica para reanimar o Dia da Liberdade).
     Leio a pergunta registada no pacote (à direita).
     Apetece-me dizer: Há!
    Ver uma multidão de pessoas com vontade de ser verdadeira e de lutar por uma liberdade socialmente valorizadora, limpa, empenhada na construção de uma sociedade mais justa e solidária, menos iludida e ilusória. Talvez assim fosse possível 'Desenvolver' (já que de 'Democratizar' e 'Descolonizar' se evidenciou alguma coisa com a Revolução dos Cravos). Isto porque quero acreditar que isto não seja impossível nem falso.

    ... e eu preciso de café.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Antígona: reflexão sobre o(s) poder(es) para salvar a vida

     Um espectáculo... (no duplo sentido).

    Numa encenação de Nuno Carinhas e com o texto de Sófocles traduzido por Marta Várzeas, expõe-se ao público uma estrutura cénica de anfiteatro, sugestivamente fundacional da tradição grega; o visionamento de um cerimonial performativo de natureza cívica; a força de uma representação que se faz dos conflitos de critérios, do entendimento e do significado a dar a certas palavras; da abordagem trágica não tanto de situações (como em Ésquilo), mas, mais, de caracteres.
     A força de um dever apoiado no sentimento e no laço familiar debate-se com as ordenações estabelecidas por um poder que, por mais que seja inicialmente legitimado e reconhecido, escapa ao entendimento moral. É o que sucede quando não se admite soluções e apenas se dá ordens (tal como Creonte); e assim se chega a ameaçar o Cosmos, lançando-se o mundo no caos.
    A atitude de oposição da jovem Antígona, figura que o leitor / espectador mais guarda na memória (não obstante a reduzida presença no texto / na representação), culmina num diálogo intemporal, feito da legitimação da lei dos deuses em detrimento da lei humana. Torna-se admissível a questão de quem escreve as leis não escritas dos deuses. Nesta linha de reflexão, cresce o confronto de dois poderes, ao qual se junta outro: é posto em causa um acto humano de Creonte, enquanto porta-voz das razões de Estado, para se impor aquele assente numa plataforma moral, familiar - eticamente sustentado a ponto de ferir de morte alguns sinais de um mundo despótico.


    No final, chegada a “anagnorisis” (reconhecimento), a força do tempo impera: é tarde. A “hamartia” (erro trágico) faz com que Antígona, num bailado de dor que a conduz a uma caverna escavada na rocha, acabe por pôr termo à vida. Também Hémon (o noivo de Antígona, o filho de Creonte) teve na espada com que se trespassou o acto sofrido do amante que - apesar de saber usar da palavra, do discurso apoiado num raciocínio aprovado - deixou na palavra dita toda a força que não alimentou o feito desejado ou a solução creditada.
    Da quase ausência de Antígona (no texto ou no palco) se faz a presença forte de uma consciência liberta, mas ameaçada na condição e na existência; do tempo representado, já passado, se revê o presente com muitos poderes que, no jogo da pólis e do ethos, se degladiam.
    “Não há ventura sem desdita” é máxima que Sófocles parece querer situar ao nível das forças do destino. Ao ouvir que “Há mortos de que os vivos são responsáveis”, impõe-se a acção do Homem, a origem de algum do sentido trágico e desventuroso traçado pelo próprio; mas também a fonte para poder salvar a vida.

       Pela mensagem do texto dramático, pela qualidade arrebatadora da representação e encenação, pela(s) companhia(s) do momento, esta foi uma noite que deu em muita luz.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Pela paz ansiada

      É nos tempos mais conturbados que se dá mais valor ao que nos inspira segurança, estabilidade, paz...

     Neste Dia Mundial da Voz, dê-se esta última à poesia...

Um pequeno filme para um grande tema em verso e voz trabalhado (Filme VO)

..., fazendo-se ouvir as palavras dessa poet(is)a que buscou o sentido completo, pleno das coisas: "Na febre de buscar o senso à vida / Descubro-me dor de alma inacabada". Vislumbro nestes versos uma intrigante actualidade, na crença de uma Natália Correia, para quem "tudo é eterno num segundo".

      ... porque a poesia é voz, é música e, no uso das palavras mais incisivas, não deixa de convocar a paz.

Tópico: o meu olhar...

    Não é lá grande coisa, principalmente nos tempos que correm. Já houve melhores dias.

    Lido o poema de uma amiga, tão feito do azul celeste com que pinta o seu firmamento, entro em diálogo versificado, numa polifonia disfórica... com um outro olhar.


FÉNIX-ÍCARO SEM (G)RITO

No meu olhar,
sou Fénix em cinza
sem azul no firmamento;
com lua
cercada de noite
e de uma diminuta estrela
que aspira a ser Sol.

Deixá-la brilhar...
Talvez alumie
quem ainda vive
de tanto imaginar.

Em sétimo céu,
Ícaro viu-se perder.
À terra voltou,
depois de o Sol cobiçar.
No calor do fogo,
achou motivo para a queda.
No calor do fogo,
ficou a Fénix queda
(sem fêmea que a chorasse).

Há voos que,
na liberdade cega,
do ar tombam no mar;
há cinzas que,
sopradas pelo vento,
se dispersam,
se apartam
de um apregoado brotar ...
longe do renascer.
Pobres mitos, em rito por cumprir!

Neste meu desencantado olhar,
há íris que embate em nevoeiro;
pupilas sem mestre, em cegueira;
há uma imensa e intensa luz
turvando um mundo
que, de fantasia, se faz do que o ilude...

Não deixa voar
este meu olhar.
Gondomar,
20 Abril 2010 (um dia sem história)

    Se quem muito alto sobe muito baixo desce, espero que o inverso também se faça verdade, pela esperança de melhores tempos e olhares.

terça-feira, 13 de abril de 2010

Reencontro: melhor mais uma vez do que outra vez

    O reencontro é com a música e com um dos diversos grupos que acompanhei na década de 80 do século passado, tal como muitos outros teenagers desse tempo.

      Nessa altura, entre muitos êxitos, até as barricadas eram menos limitativas, mais transponíveis.

Do álbum Through the barricades, lançado em 1986

   Hoje, passado o século, alterados o tempo e os rostos, mantém-se o tom dos "new romantic" Spandau Ballet. Revive-se a voz de Tony Hadley, o saxofone de Steve Norman, mais os guitarristas Gary e Martin Kemp, além do baterista John Keeble.

Do sétimo álbum do grupo (Once more), datado de 2009

         ONCE MORE

I don't want to let you down
I just want the chance to turn myself around
I keep on searching for the sound
I don't want to do you wrong
I just want to take us back where we belong
We were hot and we were oh so strong

Oh I know we will make it if we try
Reach for the stars and we can touch the sky


Darling, once more, won't you give me one more time
Say these words together
I need you more than ever
Trying once more
One more chance to make it right
Never say never, let's rise up together, take on the world

I don't want to change a thing
I don't want to change this whisper to a scream
Same old song in a different dream
Sorry I stole the show
I can't believe I had your heart and let it go
I always loved you but I didn't know

Oh there's nothing standing in our way
We've got the love but do we want to play


(Let's stick around, go round again
Another chance to make amends)

     Revivalismos em tempos de saturação - sempre é uma estratégia de sobrevivência.

    Com música, o passado até pode ser retemperador (sem querer ser saudosista). Pelo menos, traz alguma harmonia, para tempos que se revelem mais esgotantes e esgotados: "Let's rise up together, take on the world" (no matter how heavy I figure it out, right now).


segunda-feira, 12 de abril de 2010

O contrário de relevar é... relevar!

    Porque há verso e reverso, há sempre a possibilidade de a poesia voltar ao uso original da língua (se não for ela a própria origem); porque há palavras que têm em si o seu antónimo, construa-se o significado que mais lhes convém.

     É o caso da palavra 'relevar', conforme se lê nas frases dadas:

i) A chamada telefónica permitiu-lhe relevar as saudades que tinha sentido com a partida do amigo.
ii) Depois da situação crítica vivida, passou a relevar muito do que julgava ser o pior da vida.

a) Muita gente acha que os adornos ajudam a relevar a beleza.
b) Entre tantos assuntos a tratar, o administrador decidiu relevar uns tantos em detrimento de outros de pequena monta.

     Entre os pares construídos, ao primeiro  associa-se o sentido da diminuição e da atenuação; ao segundo, o traço da saliência, do destaque. À perda de i)-ii) contrapõe-se o ganho em a)-b), fazendo-se sobressair algo.

     Se algumas palavras são camaleónicas (mudando a classe, apesar da forma, tal como os famigerados répteis o fazem na cor), outras há que tudo mantêm, excepto aquilo que os comunicantes nelas possam ver ou ler. Por isso, quando se relevar algo que tenha sido dito, há sempre a possibilidade de acertar em pólos extremos, conforme se queira destacar (porque se aceita) ou menorizar (porque se discorda).

sábado, 10 de abril de 2010

Como eu... melhor do que eu.

      Professor de Português: há 86 anos nascia um exemplo de atenção à vida (por mais curta que ela tivesse sido) e ao ensino (sobre o qual se lê alguns dos momentos vividos, num diário póstumo).

        "A aula começou pela algazarra do costume. Parece uma romaria depois dos primeiros copos. Eu entro e peço paz, suplico paz, imponho paz; o primeiro minuto tem de ser de paz imposta; o segundo é que já é paz provocada, paz devida ao interesse que a aula consegue ter (ou romaria novamente, devida ao desinteresse que a aula consegue ter...).
       Fez-se, imposto, uma espécie de silêncio; um silêncio cheio de resíduos de barulho... E comecei a ler."


      Um apontamento para muitos momentos repetíveis na "romaria", desejáveis num ritual de leitura que se constrói. Quando ler é voz, há como que o canto sedutor das sereias a dominar incautos marinheiros, sem que se lhes anuncie nenhum naufrágio (bem pelo contrário!).
       E, depois, há aquele outro registo que também recordo dos meus tempos de estágio, quando pela primeira vez me cruzei com a escrita de Sebastião da Gama. Nele lia o que teria gostado de ter sentido com alguns dos meus professores (e alguns certamente o conseguiram, a ponto de querer tornar-me um deles); nele pressentia algo a seguir, se queria que as minhas aulas tivessem alguns momentos de alegria e de felicidade (quer para mim quer para os que comigo iriam trabalhar) a par de algum esforço necessário ao saber.


     
     Entre 1924 e 1952 correu o tempo para a curta existência e a intensa vivência de um professor e poeta. 28 anos de um "insofrido anseio de se dar às coisas como aos seres"; existência que o Prof. Hernâni Cidade caracterizou no prefácio do Diário (1958) daquele seu aluno, na Faculdade de Letras de Lisboa, que se havia dado a conhecer em verso, com Serra-Mãe (1945).

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Sem romantismos...

     Pensamento... dos mais românticos ou práticos?

     Numa exposição que se encontra no Centro de Estudos Camilianos - Casa Museu de Camilo (São Miguel de Ceide), a propósito das mulheres na vida de Camilo, lê-se:






















      Palavras desconcertantes, por certo, quando revisitadas na atualidade.

      Escrito por quem foi, que se diria do percurso em versão masculina?!

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Porque amador é aquele que ama

     No fim de um dia, na Quinta da Bonjóia, foi tempo para uma conversa a propósito da figura precursora e introdutora do Surrealismo em Portugal: António Pedro (1909-1966).

    Na sequência dos "Serões da Bonjóia - Tertúlias à moda do Porto", Júlio Gago, director artístico do Teatro Experimental do Porto (TEP), proferiu a última de quatro conversas à volta do tema 'António Pedro' (figura primeira na direcção artística deste grupo, no período 1953-61). 
   Ainda no contexto da comemoração do centenário de nascimento (iniciativa começada em 2009 e prolongada até ao presente ano), foram abordadas as facetas do jornalista (foi inclusivamente director de dois jornais de Coimbra: "Bicho" e "Pena, papel e veneno"), escritor, pintor, desenhista, encenador. 
     Nascido em Cabo Verde (na cidade da Praia), chega ainda criança a Portugal. Estudou em La Guardia (onde cultivou o gosto pelo teatro). António Pedro foi homem para se multiplicar por várias áreas artísticas, tendo sido pioneiro em Portugal nalgumas delas.

      Aqui ficam alguns apontamentos, a relevar o seu papel:
      . ao criar a primeira galeria de arte comercial com Tomás de Melo (a U.P., 1932);
    . ao participar nos manifestos Planista e Dimensionista (1936), fundamentais para o surrealismo europeu, que entra em Portugal por via de António Pedro - figura principal do Grupo Surrealista de Lisboa (1947-9); 
      . ao escrever o primeiro romance (assim chamado porque o autor assim o quis) poético surrealista, intitulado Apenas uma Narrativa (1942);
     . ao inovar nas artes gráficas em Portugal (com a capa do número inicial da revista Variante, da qual foi director, em 1942);

   . ao dar voz à liberdade ansiada (vinda de Londres, pela BBC, aquando da II Guerra Mundial, mais precisamente nos anos 1944-5), na luta contra o autoritarismo fascista (fosse pela esquerda fosse pela direita);
    . ao renovar a estética do teatro em Portugal, essencialmente no âmbito da encenação.
      Viria a morrer em Moledo, aos 67 anos.
      Jorge de Sena viria a antologiar o que de melhor António Pedro fez na poesia.
António Pedro, em foto de Fernando Aroso

      Depois de cerca de hora e meia de conversa, dois dados se retiveram: na opinião do orador, António Pedro não é tão reconhecido no seu país como o é lá fora; se não é assumido como um brilhante exemplo da Arte Moderna (de que foi pioneiro também no ensaísmo), contribuiu determinantemente para a inovação, o pioneirismo e o brilhantismo de diversas formas de expressão artística (literatura, pintura, cerâmica, teatro). 

quarta-feira, 7 de abril de 2010

De Camilo a Régio, para literatura feita de viagem

      Para isto servem as pausas: ver, ler, ouvir e sentir a literatura que vai oficialmente escapando aos nossos sentidos.

      A viagem teve como destino, na manhã, S. Miguel de ... ora Seide ora Ceide (indicações para diferentes gostos gráficos, sempre em comunhão homofónica). Momento para recordar Camilo Castelo-Branco, o seu tom sarcástico e irónico de escrita; um percurso de vida entre o aventureiro, o crítico e ousado, o sofrido; um homem que enfrentou o próprio tempo.
     Da casa onde pôs termo à vida ao Centro de Estudos Camilianos... um atravessar de rua para se acompanhar uma exposição sobre as mulheres do escritor (da mãe, das diferentes companheiras, àquela que lhe seguiu os passos na literatura - ainda que, assim se diz, ele a preferisse na cozinha).
     À tarde, foi a vez de José Régio, um homem plural para (ou em) um escritor singular. 68 anos de vida para o defensor da "Literatura Viva": "Em arte, é vivo tudo o que é original. É original, tudo o que provém da parte mais virgem, mais verdadeira e mais íntima duma personalidade artística". Haja personalidade na obra, mas quanto a obedecer-lhe... assim o entenda o leitor.
     Entre a formação em línguas românicas, a docência de Português, a produção escrita e as colecções de arte popular antiga mais as de pendor sacro, José Régio impôs-se como figura de intervenção cívica e intelectual na primeira metade do século XX, sendo um dos fundadores do segundo modernismo português e da revista Presença.

Pseudónimo de José Maria dos Reis Pereira,
neto de ourives e filho de homem dedicado às artes e letras,
rendido à necessidade de trabalhar na ourivesaria
     




             Vila do Conde aqueceu os caminheiros com o sol que abrilhantou o dia, num contraste assumido com o espírito suicida do autor de Onde está a Felicidade? (1856); com a ambiência sofrida, vitimizadora e dominada pela arte sacra com que o criador de Confissão de um Homem Religioso (póstumo) traçou as divisões de uma casa herdada da tia-avó e madrinha, ao lado daquela em que havia nascido.

     De uma tertúlia andante se fez resumo, para o que da crónica a produzir muito haveria a escrever; mas, perante dois exemplos de escritores fisicamente pequenos (embora intelectualmente grandes na literatura e cultura portuguesas), tudo ficaria a esmo face ao que "doze apóstolos" puderam vivenciar.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

As salaam alekum...

          Assim se cumprimenta quem se deixa dominar pela Fúria Divina.


      A construção do romance obedece a um processo de alternância desnivelada: entre duas histórias aparentemente paralelas, com o nível narrativo centrado no egípcio Ahmed a situar-se num ponto mais recuado no tempo face ao que focaliza a intriga de Tomás de Noronha-Rebecca Scott-Frank Bellamy.
    Numa intriga feita de enigmas a descodificar, de aprendizagens a construir e de riscos / desafios a correr, o leitor ganha com a pesquisa feita por José Rodrigues dos Santos e a partilha sobre alguns dos princípios e ideais islâmicos (dos mais pacíficos aos mais fundamentalistas); tira ainda proveito de toda uma história que apresenta diferentes perspectivas do que é o islamismo, o Alcorão e o radicalismo religioso.
        Numa crise mundial em que Ocidente e Oriente são pólos de tensão e de luta pela supremacia de poder, a religião torna-se bandeira para um jogo conflitualmente assumido entre o governo segundo as leis dos homens e o domínio segundo as leis de Deus (não fossem estas últimas interpretadas à luz da racionalidade dos homens!).
        Tudo o mais anda algo próximo da receita de Dan Brown e da personagem Robert Langdon: um perigo instala-se, o confronto com o mau da fita é inevitável, a descoberta é feita (jogando com sinais e raciocínios que um historiador e criptanalista acaba por desvendar ao último segundo). E, para não variar, um toque de sedução para ver se vai durar muito.
         Por fim, há de tudo e para diferentes (des)gostos: entre a afirmação da genialidade do protagonista e a frustração ou desilusão de alguns dos seus intentos.

      Tal como se começou, resta fechar no mesmo tom e com educação: Wa alekum salema (assim se devolve uma saudação).