segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Caminhada literária com Sophia

       A fechar setembro, o sol e a poesia animaram os caminhantes, fazendo a diferença dos dias.

     Éramos mais de quarenta. Seis quilómetros de ida e vinda, ao longo do passadiço marítimo a ligar Espinho à Granja, foram o percurso traçado, na passada poética de uma obra em vários pontos declamada - uma atividade promovida pela Coordenadora e pelas professoras bibliotecárias do Agrupamento de Escolas Dr. Manuel Laranjeira, no âmbito da Rede Interconcelhia de Bibliotecas Escolares de Entre Douro e Vouga. Estiveram presentes a Coordenadora Interconcelhia, Diretores do Centro de Formação do AVECOA e de Terras de Santa Maria, a representante para a Autonomia e Flexibilidade Curricular do Centro de Formação Aurélio da Paz dos Reis, representantes do SABE de Santa Maria da Feira, Vale Cambra e Oliveira de Azeméis, bem como professores bibliotecários da área do Douro e Vouga.

   Pequena brochura com alguns poemas de Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004)

    Levei comigo o Livro Sexto (1962), para dar visibilidade a um livro e lembrar a contemplada com o "Grande Prémio de Poesia da Sociedade Portuguesa de Escritores", atribuído em 1964 (sessenta anos); o "Prémio Camões", pela primeira vez ganho por uma escritora, em 1999 (vinte e cinco anos); o "Prémio Rainha Sophia da Poesia Iberoamericana", em 2003 (vinte um anos). Autora há vinte anos falecida; há dez no Panteão Nacional. Recordaram-se histórias.
    Tudo começou com Poesia (1944), esse título de há oitenta anos que o crítico e professor de Literatura Pedro Eiras sublinhou como o mais justo dos títulos, para uma obra onde «Assim surgia uma língua, nova e límpida».
   Aproveitei o facto de estarmos junto ao mar; de inspirarmos esse sal de vida trazido por ondas, conchas e corais; de estarmos banhados de uma luz matinal; de nos dirigirmos a um lugar vivido por Sophia e os seus; de sentirmos uma Geografia (1961) feita de tempo, de sentimento, de humanidade.
       Evoquei "Manhã" (in Livro Sexto):

Como um fruto que mostra
Aberto pelo meio
A frescura do centro

Assim é a manhã
Dentro da qual eu entro.

       Assim, o fizemos. Entrámos na manhã (luz) e nessa maresia que é cheiro e toque desse elemento que inspira "Inscrição" (in Livro Sexto):

Quando eu morrer voltarei para buscar
Os instantes que não vivi junto do mar.

     Uma imensidão que a limitação humana só pode atingir pela imaginação, pelo humanismo, pela humanidade, pela cultura, pela antiguidade greco-latina e pelo sentido de liberdade que a poeta (como se designava) também versou, narrou, representou na versatilidade de géneros e modos literários produzidos.
     Desafiei o grupo à leitura de pequenas composições, tantas vezes despercebidas entre poemas mais longos.  Tão pequenos (dísticos, tercetos) e tão poderosos na mensagem, no pensamento - quase parecem "haikus", no trabalho de uma palavra a traduzir a justaposição de imagens, de temas, interligados na experiência de vida, na sensorialidade do natural e da natureza, na sonoridade simples (in Ilhas, 1990):

Cumpridos os deveres compridos deixaram
De assediar minhas horas

Doce a liberdade retoma em si minha leveza antiga

      A sabedoria constrói-se também com movimento, do mar ou outro - vento, tempo, pessoas -, como se antevê em "Coral" (in Coral, 1950):

Ia e vinha
E a cada coisa perguntava
Que nome tinha

    A reflexão social plasmada na denúncia dos desfavorecidos e na ironia destinada aos seres racionais não impede que as origens aristocratas de uma biografia rimem com um apurado sentido de justiça, de luta pelo bem comum, de partilha e de generosidade (in "Epidauro 62" de Ilhas, 1989):

Oiço a voz subir os últimos degraus
Oiço a palavra alada impessoal
Que reconheço por não ser já minha

     Recuperei os cinquenta anos do "25 de Abril", nesse poema inicial dos tempos de liberdade e democracia, de luz e limpidez, afastando a noite e o silêncio.
     Numa irmandade de leitores, deu-se voz à obra que todos tinham à mão. Leituras singulares, experiências em coro, animadas por esquemas que não precisaram de qualquer ensaio. Só a vontade de ler, de viver a palavra, o ritmo, a voz, a companhia. A poesia uniu o que de melhor havia em todos. 
    Culminou a atividade num almoço concluído com a "Cantata da Paz" (in Canções com aroma de abril) - nunca melhor poema para os tempos de guerra que (ainda) vivemos.

       "Vemos, ouvimos e lemos / Não podemos ignorar ", repetidamente declamado a cada estrofe de lamento, violência e destruição, parecia uma oração trazida para o seio dos crentes, nessa religião tão necessária e tão nossa: a da paz e da poesia.

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Constância... já foi mais constante

       O nome da localidade anda presentemente pelas ruas da amargura.

      Cheguei a lá ir em tempos, com alunos, na senda de alguns sinais da presença camoniana, sempre em articulação com outras áreas de saber (particularmente quando o poeta não deixou de ser exemplo de homem completo nos saberes, tendo numa mão a espada e noutra a pena).
      Hoje parece não haver muita constância, estabilidade económica numa terra que apresenta sinais de fragilidade, com uma grande empresa de tupperwares em condição de insolvência. Assim o foi noticiado e (pasme-se!) legendado:

Incertezas televisivas com orientações / nivelações distintas 
(na legendagem da RTP1, captada pelo olhar atento da ARS, a quem agradeço o contributo)

       Caso para dizer que nem constância nem coerência, pelo menos no que à língua diz respeito.
   "Pairar" combinado com "sob" aponta para incompatibilidade de níveis (superior e inferior, respetivamente). Nada como 'pairar' com outra preposição, de modo a escapar à incoerência criada.

       As incertezas ou 'pairam sobre' ou 'pairam em' (uma questão de seleção a partir do verbo usado).