sábado, 26 de julho de 2014

Asneira em cima de asneira...

     Tem sido esta a orientação no serviço público da língua. Mentira?

     Vivemos tempos de ludíbrio: ser rápido para ser melhor, dizer uma vez e aprender-se logo, contratar mão de obra barata e por pouco tempo, repetir o erro a ponto de o tornar verdade, encarar como bom (português) o que nunca foi... A barbaridade é extensa e infinita.
    Foram já várias as observações quanto ao mau serviço prestado pela RTP no chamado "Bom Português" - e permanece tudo como antes, com insistência evidente no erro (então o de 'sábado' ser escrito com letra minúscula por causa do novo Acordo Ortográfico já mete dó de tanta ignorância repetida). O mesmo aconteceu relativamente à escrita impensável dos rodapés em qualquer um dos maiores canais televisivos e seus associados (RTP, SIC, TVI). 
     Ora, os últimos tempos têm sido pródigos em ocorrências infelizes para qualquer leitor atento. Por vezes, acho mesmo que estou a ler textos de alguns alunos (os que escrevem mal, obviamente; porque os que escrevem bem até podiam ser contratados, para bem deles, da imagem dos canais e dos leitores).
    Para começar, um erro associado à má pronúncia numa leitura oralizada da palavra (e que conduz à má grafia da mesma - mais uma razão para se falar bem, para se poder escrever melhor):

Imagem captada na emissão do Jornal da Tarde (na RTP1), do passado dia 19 do corrente mês.

     Será de ESPECIALISTA escrever bem a palavra?!
    Quase uma semana depois, num mesmo apontamento e numa mesma edição noticiosa, encontram-se não um, não dois, mas três registos incorretos seguidos, a saber:
a) a utilização indevida da expressão relativa 'por que' em vez da conjunção subordinativa causal 'porque' (a introduzir o motivo para o arquivamento proposto pelo Ministério Público);

Imagem captada na emissão do Jornal das 19 (na RTP Informação), do passado dia 25 do corrente mês.

b) a acentuação errada de uma palavra aguda terminada em 'z';

Imagem captada na emissão do Jornal das 19 (na RTP Informação), do passado dia 25 do corrente mês.

c) a já comum, ainda assim errada, indiferenciação entre a expressão '(ter) a ver' e o verbo 'haver'.

Imagem captada na emissão do Jornal das 19 (na RTP Informação), do passado dia 25 do corrente mês.

    Quem não tem hábitos de leitura até pode ter alguma razão para não distinguir realizações com alguma natureza ou aproximação homofónica. Mas... podem os meios de comunicação social ter pessoas nos serviços de escrita / de edição sem formação adequada? E não há ninguém responsável por alguma supervisão gráfica, no mínimo? Ou linguística, no máximo?

     Pelos vistos (e pelo lido), não! E assim é capaz de continuar (verdade insuportável e lamentável). Triste condição do serviço público!
     

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Uma poeta no Panteão

     Por etimologia, Panteão é o templo dedicado aos deuses greco-romanos. Sophia lá está, a partir de hoje, na Igreja de Santa Engrácia (Lisboa) - a mesma cujas obras de restauro outrora nunca mais terminavam e deram lugar à expressão "obras de Santa Engrácia".

    Passados dez anos da sua morte, os restos mortais de Sophia de Mello Breyner Andresen deram entrada  no que é atualmente identificado como monumento da memória coletiva de cidadãos ilustres nacionais.
     A autora de muita prosa - A Menina do Mar e A Fada Oriana (1958), Noite de Natal (1959), Contos Exemplares (1962), O Cavaleiro da Dinamarca (1964), O Rapaz de Bronze (1965), A Floresta (1968), A árvore (1976), Histórias da Terra e do Mar (1984), O Bojador (2000) - e muito verso irá estar junto de outros escritores - Luís de Camões, Almeida Garrett, Guerra Junqueiro, Aquilino Ribeiro - e várias outras personalidades portuguesas também reconhecidas. Entre as mais recentes Amália Rodrigues e o General Humberto Delgado. É na mesma sala deste lutador contra o fascismo ditatorial que estará a criadora dos versos anunciadores da liberdade democrática do 25 de abril.
    Na luta que empreendeu pela causa pública, vários foram os poemas que a espelharam. Na obra Mar Novo (1958) encontra-se "Porque", um dos mais significativos na defesa da justiça e da verdade - valores assumidos como instrumento de denúncia da adversidade, de uma sociedade que, nas suas palavras, não se responsabiliza pelos mais fracos ou mais vulneráveis.


     No ideal de uma sociedade em que todos não ganhassem mais dinheiro, mas em que todos precisassem menos dele, Sophia compôs um universo poético com coordenadas muito solidárias, humanistas. Na compilação da Obra Poética, editada pela Editora Caminho (2010), há feixes de luz clássica; o perfume, os sons e a cor do mar; o grito de liberdade e a busca atenta do que o mundo oferece de esplendor e dor. A escrita poética materializa a sua observação, participação e convivência com a realidade; o encontro com vozes, personagens e imagens que tão generosamente deu a ler com a palavra "alada impessoal / Que reconheço por não ser já minha" (Epidauro 62, in Ilhas, 1989).
   Da escritora nascida no Porto (1919), que cria na poesia pré-existente na natureza (sendo apenas necessário saber ouvi-la) e nela pensava como forma de construção e transformação do mundo, fica a memória eterna na capital, no Panteão Nacional.
   
    Entende-se o reconhecimento de uma figura cimeira da literatura portuguesa, ainda que o maior deles nunca seja a alocação num espaço de pedra nem nos discursos dos políticos e governantes que, tal como enaltecem a escritora, também ignoram a obra, ao legitimarem programas de ensino (como o novo programa de Português do Ensino Secundário) que não a contemplam entre os autores do século XX. Ironia da educação destes tempos, em que a aparente "luz que nos rodeia é como grades". Felizmente, há formas de desfazer ironias e grades muito enferrujadas.