segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Pessoa(s) para conhecer e (re)ler

     Balanço de escrita: um livro publicado. Não fora o título Mensagem a nota de um prenúncio, de um enigma por desvendar, fica toda uma vida plena de entidades e identidades, entre um tempo de infância por viver e a eternidade que sobrevive em qualquer leitor - um círculo de possíveis.

    74 anos nos separam dessa data que marca a morte física de um escritor que anunciou um "Supra-Camões", corroborou a utopia vieirina de um Quinto Império, reviu o mito sebastianista na construção do Encoberto.

O Encoberto em Pessoa, in "Mensagem", de Luís Vidal Lopes

    No exercício de construção fictícia, multiplica-se numa unidade que ecoa em diversas sensibilidades (a diversidade na unidade) - invenção para a produção de toda uma obra eivada de modernidade e de um modernismo ora feito de vanguarda ora tomado de pensamento clássico.

Vivem em nós inúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.

Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faço-os calar: eu falo.

Os impulsos cruzados
Do que sinto ou não sinto
Disputam em quem sou.
Ignoro-os. Nada ditam
A quem me sei: eu 'screvo.
Ricardo Reis

    Se de pessoa calada / afasta a tua morada, / De quem muito escreveu / e se deu a conhecer / não há como a ler / para qualquer (dos) Pessoa(s) entender.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

A star was born...

      Em 1845: dia para uma estrela das letras portuguesas.


Caricatura em aquarela de Eça de Queirós (Lézio Júnior)

      Começa essa época que viria a marcar-se pela agitação intelectual e teria em Eça um dos seus mais significativos espíritos revolucionários. Folhetinista, romancista, "prosador bárbaro", jornalista, advogado e diplomata, é a escrita que hoje ainda lhe dá renome, num sentido de actualidade inquestionável.
        Em A Cidade e as Serras, editado em 1901 (postumamente, e após um ensaio feito com o conto "Civilização", datado de 1892), há profecias para um tempo e um homem muito actual, prenunciado num Zé Fernandes que admira a mesa de toilette de um Jacinto:

"As escovas, sobretudo, renovavam, cada dia, o meu regalo e o meu espanto - porque as havia largas como a roda maciça dum carro sabino; estreitas e mais recurvas que o alfange de um mouro; côncavas, em forma de telha aldeã; pontiagudas, em feitio de folha de hera; rijas que nem cerdas de javali; macias que nem penugem de rola! (...) E assim (...) permanecia este Príncipe [Jacinto] passando pêlos sobre o seu pêlo durante catorze minutos".

     Caso para dizer: o requinte de um autêntico metrossexual dos finais do século XIX (a avaliar pelo período de criação), ou de um "Vencido da Vida" à la Eça. Ora essa!

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Um calvário de peregrinos

     Em pleno dia de sol entalado entre dois dias chuvosos (qual dádiva divina), nova visita de estudo, com professores e alunos de 11º ano da ESG, pelas ruas do Porto.

    Eram cerca de 220 à procura dos sinais desse tempo barroco e de uma mentalidade que se plasmaram na arte prédica / sermonária de Padre António Vieira.

Torre dos Clérigos, arquitectada por Nicolau Nasoni,
com um nicho dedicado a S. Paulo no 1º andar.

Nas ruas e ruelas da cidade invicta
é bem visível uma arquitectura diferente,
marcada pelo tempo e pelo estilo
de uma mentalidade rebuscada,
em que a utilização da talha dourada,
dos azulejos e da policromia
revelam a vivacidade
e o dinamismo próprios
de uma sensibilidade barroca.

     Entre a Igreja de S. Francisco, a da Misericórdia, a de Santa Clara; a Sé do Porto; a Igreja de S. Lourenço - foram estas as cinco referências, entre as muitas da cidade, para uma manhã feita de peregrinos (quais carmelitas descalços e clarissas).

Pérola imperfeita, mas bela – tal como a cidade do Porto
Oculta está muita riqueza artística que é preciso redescobrir
Requinte na decoração e no pormenor
Talha dourada e azulejos abundantes: ouro sobre azul
Ostentação e saturação das sensações: festa dos sentidos

Barroco: embelezamento de espaços que são de todos
Arte e cultura significativas ainda no nosso século XXI
Renovação: entre o teatro da vida e a inevitabilidade da morte
Rococó, Maneirismo: afectação com todos os afectos
Ouro nas paredes das Igrejas: recolhimento talhado de exuberância
Criatividade nas artes - para a vida ser mais viva
Outrora de desequilíbrios, numa cidade que anseia ser mundo

Dos professores organizadores da visita

     Mais um tempo para alunos e professores sentirem que há muito mais vivências e mundos do que aqueles de que se fala dentro de uma sala de aula.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Libertação e magia da palavra... recriada

       Estes os efeitos decorrentes do nascimento de um poeta há 79 anos.

Pintura de Maria Henriques

     Galardoado com o prémio Pessoa em 1994, Herberto Helder recusou o prémio. Entre a discrição e o registo da singularidade, a misantropia é traço de uma coerência que se rebusca na poesia, na escrita. O sinal disso mesmo se encontra na narrativa seguinte:

    A Teoria das Cores

      Era uma vez um pintor que tinha um aquário com um peixe vermelho. Vivia o peixe tranquilamente acompanhado pela sua cor vermelha até que principiou a tornar-se negro a partir de dentro, um nó preto atrás da cor encarnada. O nó desenvolvia-se alastrando e tomando conta de todo o peixe. Por fora do aquário o pintor assistia surpreendido ao aparecimento do novo peixe.
     O problema do artista era que, obrigado a interromper o quadro onde estava a chegar o vermelho do peixe, não sabia que fazer da cor preta que ele agora lhe ensinava. Os elementos do problema constituíam-se na observação dos factos e punham-se por esta ordem: peixe, vermelho, pintor — sendo o vermelho o nexo entre o peixe e o quadro através do pintor. O preto formava a insídia do real e abria um abismo na primitiva fidelidade do pintor. 
     Ao meditar sobre as razões da mudança exactamente quando assentava na sua fidelidade, o pintor supôs que o peixe, efectuando um número de mágica, mostrava que existia apenas uma lei abrangendo tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Era a lei da metamorfose. Compreendida esta espécie de fidelidade, o artista pintou um peixe amarelo.
in Os Passos em Volta (1963)

      Fica assim a nota entre um surrealismo tardio e a expressão original da criação, própria de uma lente poética que desfragmenta aquilo que o leitor tem a (re)criar, numa redescoberta das linhas de um corpo que exteriorizam a veia inspiradora e produtora da obra literária.

Novas abordagens para velhos mitos

      Um filme que se vê...
   
      Este é o balanço do visionamento de 2012, sempre com a noção de que se trata de um "dejá vu".

  Trailer do filme de Roland Emmerich (2009)

     Para quem já viu 'The Day After', 'The Day After Tomorrow', 'The Independence Day' e outros do género, '2012' pouco traz de novo. É o regresso do mito do fim do mundo, ficcionalmente tomado por alguma esperança na humanidade (pena que esta seja vista sempre após um período de crise e de catástrofe).
     Registo, contudo, algumas notas:
. o ressurgir de um mito fértil na ficção dos tempos, desta feita sob a égide da leitura, da profecia, das premonições que a civilização Maia deixou à Humanidade;
. a retoma de motivos bíblicos (desta feita com a Arca de Noé, símbolo da preservação das espécies, e os tempos recuperados do dilúvio, no Velho Testamento), como sinal do renascer dos tempos ou marca romântica do eterno retorno;
. a recuperação do tópico de África como o continente-berço da humanidade (num renascimento da Humanidade e numa releitura 'up-to-date' do que seja o 'Cabo da Boa Esperança');
. a numeralogia a fazer das suas (21-12-2012), num jogo entre "Saltimbanco" (I), símbolo da origem das coisas e de um valor solar, e "Papisa" (II), símbolo do crescimento e do indefinido que se repete a partir da unidade; sem esquecer "A Imperatriz" (III), símbolo do sentido de comando e de acção numa iluminação benéfica ao espírito pela possibilidade de ensinamento (a força mental à disposição do ser), nem "O Papa" (V), poder espiritual e força de acção sobre o plano material (graças ao qual o poder material, físico se redime, salva, redefine);
. a glorificação dos tempos de esperança, de que este século de Obama parece ser sintoma, tanto na ufania do Nobel da Paz deste ano como na messianização ou no toque de esperança em que o primeiro presidente negro dos EUA tem vindo a ser envolvido... ou se tem vindo a envolver (basta ver quem são os bons da fita).

      Sem a espectacularidade ou a novidade dos antecessores no género, com algum registo de cómico nas situações visionadas no seio da catástrofe, este é mais um filme para encher algumas salas de cinema.

domingo, 15 de novembro de 2009

Nada é por acaso...

    Depois do dia de ontem, o de hoje faz-me (re)encontrar uma pequena história infantil...

    Já me havia cruzado com este pequeno filme.


      A Gabriela voltou a colocá-lo diante dos meus olhos (o que lhe agradeço).
      Lembrei-me então: a Isaura diria que este filme não surgiu hoje por acaso; a Dulce relembraria nele a portentosa Pandora (que, apesar de alguma nota negativa, apenas é chamada para aqui pelo que tem de bom... nomeadamente, a esperança que ainda deixou no interior da caixa - pode ser que a tampa não esteja bem fechada!); a Dolores sublinharia, na flor, a nota de esperança que serena e ilumina o nosso curso, por vezes feito de meandros; a Maria José já estaria com a mão na massa, a fazer deste mundo um jardim com muitas mais flores; o Matias levar-nos-ia a acreditar que é muito mais o que nos une do que aquilo que nos separa; a Ana Catarino traria a água para regar a flor, nem que tivesse de a ir buscar ao fim do mundo entre os dedos e a palma da mão; o Manel, no palco da vida, aplaudir-nos-ia por achar que somos sempre os maiores e que nem precisamos de grandes ensaios para desempenhar o nosso papel. Isto só para falar de alguns...

    Nisto, fica-me a pergunta de Saramago: "E se as histórias para crianças fossem de leitura obrigatória para os adultos?" Em dia triste e melancólico, de uma chuva tirada a vento, faz bem lembrar que há amigos (A Flor Mais Grande do Mundo) na "Aquarela" da vida e da(s) família(s) que vamos tendo. 

sábado, 14 de novembro de 2009

Um livro... muitos (re)encontros

       Uma tarde feita de histórias, de memórias e de (re)encontros...

       Assim foi, na Biblioteca Pública de Gondomar, a apresentação do livro da Maria Clara Miguel: Isaurinha ou Zazá, para os amigos.
    Uma sala cheia para ouvir a apresentação da Dulce Raquel, entre a musicalidade de um texto a rimar e a singeleza de uma canção a dar vontade de cantar - ingredientes para um clima de afectos que a Dolores Garrido muito bem soube ler nas histórias que configuram "viagens-pontes para uma solidariedade universal" (contracapa).
      Eis o que se pode ler nas Histórias para Lermos Juntos: convite à leitura dos sinais de um mundo de ficção, possível e real, porque feito da existência de todos os que se cruzaram com uma autora que é 'Maria', que gostaria de ter o nome 'Clara' e que vê em Torga um poeta de eleição... ainda por cima com o nome Miguel (de uma sonoridade feliz, tal como tantos outros nomes terminados com a letra '-l').

     Muitos foram os que se reviram nas palavras da autora; tantas as situações e as pessoas revis(i)ta(da)s pelas experiências que a vida deu e (nos) juntou... e lá esteve sempre a Isaura a captá-las, transformando-as, como Maria Clara Miguel, num mundo de encantar, com muita cor - tipo aquarela.


AQUARELA
Composição: Toquinho / Vinicius de Moraes / G.Morra / M.Fabrizio


Numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo
E com cinco ou seis rectas é fácil fazer um castelo
Corro o lápis em torno da mão e me dou uma luva
E se faço chover, com dois riscos tenho um guarda-chuva

Se um pinguinho de tinta cair num pedacinho azul do papel
Num instante imagino uma linda gaivota a voar no céu.
Vai voando, contornando a imensa curva norte e sul
Vou com ela viajando o Havaí, Pequim ou Istambul
Pinto um barco à vela branco navegando é tanto céu e mar num beijo azul.

Entre as nuvens vem surgindo um lindo avião rosa e grená
Tudo em volta colorindo com suas luzes a piscar
Basta imaginar e ele está partindo, sereno e lindo
E se a gente quiser... Ele vai pousar.

Numa folha qualquer eu desenho um navio de partida
Com alguns bons amigos, bebendo de bem com a vida
De uma América a outra eu consigo passar num segundo
Giro um simples compasso e num círculo eu faço o mundo

Um menino caminha e caminhando chega no muro
E ali logo em frente a esperar pela gente o futuro está
E o futuro é uma astronave que tentamos pilotar
Não tem tempo nem piedade, nem tem hora de chegar
Sem pedir licença muda nossa vida e depois convida a rir ou chorar

Nessa estrada não nos cabe conhecer ou ver o que virá
O fim dela ninguém sabe bem ao certo onde vai dar
Vamos todos numa linda passarela de uma aquarela que um dia em fim
Descolorirá....
Numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo ... (que descolorirá)
E com cinco ou seis retas é facil fazer um castelo ... (que descolorirá)
Giro um simples compasso e num círculo eu faço o mundo (e descolorirá).

      Com tardes destas, dá para ignorar algumas das agruras, das noites desta vida. E, assim, a Isaura nos convence de que os sorrisos são o sol; um sinal do sonho, do mundo das crianças que, por vezes, esquecemos (ou alguém procura fazer esquecer) que ainda existe em nós. Por isso, um grande obrigado para ela e para todos os que a ajudaram a criar.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Dúvidas e complexidades...

     Dúvidas consentidas, e com sentido, na sequência de alguma formação e discussão...

    Q: Na frase «Eu estou aqui, no entanto o João não me vê», para mim este «no entanto» é uma locução coordenativa adversativa. Mas eu posso dizer: «Eu estou aqui, o João, no entanto, não me vê». Ora segundo o DT, na frase «Está frio. O João, contudo, vestiu uns calções», «contudo» é um advérbio conectivo. Dou de barato que o seja. Mas na frase anterior, onde não há ponto final, mas vírgula, «no entanto» é ou não locução c. adversativa? E se não é, como diabo se classificam as duas orações?

    R: Começo por indicar que a conjunção é uma classe de palavras que introduz um constituinte ou uma oração coordenada ou subordinada.
     Na primeira frase proposta, esteja 'mas', esteja 'contudo', esteja 'todavia', esteja ainda 'porém', não deixa de haver uma funcionalidade equivalente a 'no entanto' (conectores coordenativos adversativos): a marcação de uma lógica de contraste que introduz uma oração coordenada. Reconhece-se, formalmente, alguma distinção entre conjunções e advérbios conectivos, considerando que as primeiras
       (i) ocupam a posição inicial ou de introdução do termo coordenado (sem possibilidade de deslocação no termo coordenado);
            (ii) co-ocorrem com outros conectores.
       A nível do ensino básico, creio que estamos focalizadamente preocupados com conjunções / locuções conjuncionais ao nível da construção complexa das frases, por um lado; por outro lado, e progressivamente, vamos alargando para uma dimensão textual e discursiva, cuja funcionalidade não é tão limitativa (apontando para um âmbito mais próximo dos advérbios conectivos). Neste sentido, o 'mas' é a conjunção prototípica da coordenação adversativa; 'contudo', 'todavia', 'porém' também o podem ser, quando se comportam da mesma forma que 'mas'. Registam-se, ainda assim, outras realizações em que o comportamento discursivo destes conectores adquire um sentido semântico-pragmático associado a operações de reforço, reformulação, regulação conversacional, enfatização ou marcação fática. Daí, poderem ser encontrados a par das conjunções prototípicas ('O Pedro estudou muito, mas, no entanto, não conseguiu ter um bom resultado no teste'). Assim, aqueles já não assumem prioritariamente a função de coordenar (assegurada pelas conjunções); tomam-se, antes, por marcadores discursivos, instruções semântico-pragmáticas que exploram efeitos discursivos e /ou orientam processos de interpretação (sem classificação em termos de sintaxe).
      Procurando ultrapassar esta especificação, algo complexa para os nossos alunos, tendo nas minhas aulas a utilizar um termo mais genérico: o de conector. Seja na composição das frases seja com a funcionalidade pragmático-discursiva, prevalece o sentido comum de articular, conectar, ligar segmentos, sequências relevantes para a oralidade e/ou para o escrito (opção, aliás, consentânea com as competências orais e escritas do Inglês - que sistematicamente fala de 'conectors' - bem como do Francês - que convoca os 'connecteurs'), tanto ao nível da frase como do discurso. Trataria, portanto, de não confundir dois níveis de análise, com objectivos distintos. 
    No caso dos advérbios conectivos, não se trata tanto da composição de frases complexas (coordenadas); o que está em questão é uma conexão de natureza mais discursivo-pragmática.

        ... porque há níveis de análise e níveis de abordagem que, no contexto de ensino-aprendizagem do básico, não devem ser tão especializados e/ou específicos.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Moralidades

      Nada podia ser mais coerente.

      Depois do 'post' de ontem, o de hoje faz todo o sentido, até pelo protagonista (aquele a quem se pede a Terra emprestada).


       Palavra de agradecimento a um amigo que vai dando a conhecer mensagens de moralidade e reflexão humanas mais do que actuais.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Como ficamos nós?

    Não pelo facto de o homem já cá não estar (o que sempre foi motivo para dar maior importância e reconhecimento); sim por aquilo a que deu voz.

    Mais do que julgar a tradução, a observação do vídeo basta para relevar o que é prioritário. Caso para perguntar como é que ficamos com estas imagens, com esta letra e com esta música.



    Tanto grito, tanto choro, tanto lamento, tanta pergunta para uma grande razão de ser.
    Assim foi em 1996; assim continua a ser. (E saber que o single e o vídeo não foram lançados nos Estados Unidos da América! Shame on you!).

    Uma canção para todos nós que habitamos esta Terra (daí o título: Earth Song). Angustiante, se acreditarmos que "Não herdamos a Terra dos nossos pais; apenas a pedimos emprestada aos nossos filhos".

sábado, 7 de novembro de 2009

Com Cecília Meireles

       7 de Novembro de 1901 - data para nascer uma poetisa.

     Mulher de viagens e de uma espiritualidade tornadas símbolos, entre a singeleza e o sentimento inconfidente.


Cantiguinha

Meus olhos eram mesmo água,
- te juro -
mexendo um brilho vidrado,
verde-claro, verde-escuro.

Fiz barquinhos de brinquedo,
- te juro -
fui botando todos eles
naquele rio tão puro.

Veio vindo a ventania,
- te juro -
as águas mudam seu brilho,
quando o tempo anda inseguro.

Quando as águas escurecem,
- te juro -
todos os barcos se perdem,
entre o passado e o futuro.

São dois rios os meus olhos,
- te juro
noite e dia correm, correm,
mas não acho o que procuro.


in Viagem (1938)

        Momento para relembrar um encontro com a poesia e os versos de Cecília Meireles.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Entre Sena e Sara

     Entre o aniversário de um grande poeta e uma belíssima música de Sara Tavares.


    Faria anos um dos grandes poetas da língua portuguesa - Jorge de Sena. Noventa anos para alguém acabado de regressar à sua terra pátria e que nos deu a conhecer...


      Uma pequenina luz

Uma pequenina luz bruxuleante
não na distância brilhando no extremo da estrada
aqui no meio de nós e a multidão em volta
une toute petite lumière
just a little light
una picolla... em todas as línguas do mundo
uma pequena luz bruxuleante
brilhando incerta mas brilhando
aqui no meio de nós
entre o bafo quente da multidão
a ventania dos cerros e a brisa dos mares
e o sopro azedo dos que a não vêem
só a adivinham e raivosamente assopram.
Uma pequena luz
que vacila exacta
que bruxuleia firme
que não ilumina apenas brilha.
Chamaram-lhe voz ouviram-na e é muda.
Muda como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Brilhando indeflectível.
Silenciosa não crepita
não consome não custa dinheiro.
Não é ela que custa dinheiro.
Não aquece também os que de frio se juntam.
Não ilumina também os rostos que se curvam.
Apenas brilha bruxuleia ondeia
indefectível próxima dourada.
Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha.
Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha.
Tudo é pensamento realidade sensação saber: brilha.
Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva: brilha.
Desde sempre ou desde nunca para sempre ou não:
brilha.
Uma pequenina luz bruxuleante e muda
como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Apenas como elas.
Mas brilha.
Não na distância. Aqui
no meio de nós.
Brilha.
Jorge de Sena, 25 /09/1949
in Fidelidade (1958)

      Encontro-me, entretanto, com um "Ponto de luz" que apazigua o ser.




  PONTO DE LUZ

Escutando no vento
Tua voz secreta
Que me sopra por dentro
Deixa-me ser só ser

No teu colo eu me entrego
Para que me nutras
E me envolvas
Deixa-me ser só ser

Um ponto de luz
Que me seduz
Aceso na alma

Por trás dessa nuvem
Ardendo no céu
O fogo do sol rai
Eternamente quente
Liberta-me a mente
Liberta-me a mente

Sara Tavares

     Ambos na senda da luz - da pequenina luz ao ponto de luz. A voz e o verso dos grandes, nessa poesia também feita de música libertadora. Luz para os nossos dias feitos de cansaço.


domingo, 1 de novembro de 2009

Plural: '-ãos' ou '-ões'?

      Casos clássicos para explicações novas.

       Q: Deixo-te uma questão para «esmiuçares»: num texto que li numa aula com os 'novas oportunidades' aparece como plural de 'corrimão' tanto «corrimãos» como «corrimões». Como deves calcular: dei com a discrepância... andámos à volta do 'limão', da 'mão', e respectivos plurais... mas não tenho a certeza. Se 'corrimão' vem de 'mão', e vem, eu inclino-me para o 'corrimãos', mas não me soa nada bem.

          R: Um dos sinais da influência do latim na nossa língua evidencia-se na formação do plural de palavras terminadas em ‘-ão’: ‘-ãos’ (ex.: irmãos), ‘-ões’ (ex.: camiões) ou ‘-ães’ (ex.: cães). Porém, há casos de aceitação de duas formas de marcar o plural. Entra aqui o exemplo de ‘corrimão’ ('corrimãos' ou 'corrimões'), a que Celso Cunha e Lindley Cintra já fazem referência na Nova Gramática do Português Contemporâneo como um caso de “esquecimento” da formação original da palavra quando se utiliza o segundo cenário de flexão em número. A tendência assumida para se recorrer à flexão em ‘-ões’ aparece aí explicitada e associada ao critério de frequência e de analogia com outros plurais de palavras simples.
        Ora, o caso de ‘corrimão’, ainda que seja possível associar os constituintes morfológicos a um contexto de composição (‘correr’ e ‘mão’ - o que vai ao encontro do plural ‘corrimãos’), apresenta já pistas de como se processa a lexicalização do termo (a nível tanto semântico como morfológico), afastando-o, portanto, de regularidades morfológicas. Assim se explica como a palavra (encarada como palavra lexicalizada) pode formar o plural como se de uma simples se tratasse, e na sua configuração de plural mais frequente. Há, portanto, um afastamento face à consciência diacrónica da formação (que se tende a perder entre o comum dos falantes). Daí haver quem utilize ‘corrimões’.
           Este é mais um dos casos para exemplificar a funcionalidade do processo de lexicalização, o qual permite a descrição de mecanismos de formação de palavras que escapam à sistematicidade da aplicação de regras gerais.

    E o que era excepção, afinal, enquadra-se em fenómenos ou processos mais vastos (que não deixam de manter afinidades).