Podia ser nome de agência de viagens; é antes (e também) percurso de vida para um guia em busca do caminho.
Por mais desconcertante, desencantado, desesperado e desiludido, é percurso a fazer: seja o do período da II Grande Guerra (textualmente representado) seja o de um outro qualquer momento (mais real) pintado das cores da crise e da descrença a dar lugar a tonalidades de sobrevivência. Ainda assim,é percurso com tons de vida, por maior que seja a adaptação conformada ao possível.
Esta é "A Noite da Iguana", do norte-americano Tennessee Williams (1911-1983), peça estreada na Broadway em 1961 e inspirada num conto escrito em 1946 com o mesmo título. Numa encenação de Jorge Silva Melo e numa coprodução de Artistas Unidos, está em palco no Teatro São João até ao próximo dia 26.
Ao levantar do pano, Lawrence Shannon (Nuno Lo-pes) é apresentado ao especta-dor como um ex-reverendo, não despadrado, mas afastado da igreja por escândalos diversos - nomeadamente a entrega a relações sexuais com jovens adolescentes ou a produção de sermões que mostram a imagem herege de um Deus ocidental como um "delinquente senil". Institucionalizado por desequilíbrios nervosos, Shannon consegue um emprego como guia turístico de uma agência de viagens de segunda categoria e acompanha um grupo de senhoras evangélicas até a um hotel barato e boémio da Costa Verde, no oeste do México. Aí, junto de Maxine Faulk (que vive a liberdade obtida com a morte do marido Fred e que sensual e sedutoramente procura a companhia de Shannon), experiencia uma existência feita de conflitos morais, profissionais, pessoais, num confronto febril com os seus impulsos e anseios, as suas limitações e o que uma assombração (a sua mesma sombra) lhe dá a ver. As suas fraquezas e a sua natureza obscura são espelho da condição humana, dos silêncios e das ausências com que o Homem depara. Mais ainda quando busca transcender-se (metaforicamente sugerido na subida de uma colina), depois de se ter deixado ir abaixo (ao cair, de novo, na tentação da bebida; na tormentosa crise de fé; nas relações com uma jovem turista).
No meio do desconcerto e da luta espiritual do protagonista, do trajeto de uma pintora solteirona de meia-idade e do respetivo avô (que procura compor o seu último poema), das pretensões da gerente do hotel (interpretada por Maria João Luís) não deixa de haver um grupo de turistas (alemães) alheio à perda da fé, à depressão e à crise existencial - tal como na vida de qualquer ser humano que, no desespero, não deixa de se ver rodeado de eternos otimistas ou patetas alegres, cegos ao que está para lá dos próprios umbigos. O registo da animação e da festa atravessa, por várias vezes, o palco, numa noite em que há tempestades, paraísos perdidos e buscas de portos de abrigo. Estes últimos são ainda possíveis, nomeadamente para a solteirona e estoica Hannah Jelkes (Joana Bárcia), ao construir pontes de comunicação com Shannon; para Maxine, ao atingir o seu propósito, no final, de ficar com o homem que libidinosamente desejava; para o velho Nonno (Américo Silva), ao concluir o seu poema final; para a iguana, ao regressar ao seu ambiente natural, depois de a libertarem da corda atada ao pescoço.
HANNAH: Fui ver a iguana.
SHANNON: Foi? E o que achou dela
HANNAH: Devíamos soltá-la.
SHANNON: Há iguanas que arrancam as pontas das caudas à dentada quando estão atadas pela cauda.
HANNAH: Esta está atada pelo pescoço. Não pode arrancar a cabeça à dentada para escapar da corda.
Tennessee Williams, in A Noite da Iguana
Liberta a iguana, reencaminhado Shannon para um banho de mar com Maxine, concluída a poesia da vida que não descambou em simples verso, atinge-se um sossego (por momentâneo que seja) a soar a um "happy end" muito relativo.
Só as palmas do público, de pé, deram a ouvir uma reação muito positiva ao espetáculo, para tanta febre e tanto tumulto representados n(est)a vida.
Só as palmas do público, de pé, deram a ouvir uma reação muito positiva ao espetáculo, para tanta febre e tanto tumulto representados n(est)a vida.
Diz Tennessee Williams que esta é uma peça sobre “como viver para lá do desespero e ainda assim viver”; é a expressão de desejo da libertação - tal como a da iguana que, uma vez amarrada na parte baixa do hotel, foi solta por Shannon -, para que a vida ainda possa acontecer. Num tempo em que algumas liberdades e valores democráticos estão a sair comprometidos por extremismos, sinais de prepotência e arrogância, de políticas afastadas das pessoas, há pessoas que aspiram à libertação de iguanas (também seres de Deus); humanos que ainda lutam e desejam sobreviver em (alguma) felicidade, por mais conscientes que muitas utopias já tenham caído.