sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Recursos...

      ... expressivos, anote-se.

      A questão é pertinente, merecendo apontamento nesta "carruagem".

       Q: Bom dia, caro Vítor.
       Só um pequeno esclarecimento sobre esta questão: "E como anoitecia cedo, havia outro remédio senão ir agora a mata - cavalos a correr contra o tempo e contra a idade, com o coração a refilar." Considerando a instrução "Identifica um recurso expressivo presente na expressão 'com o coração a refilar', considero metáfora, mas posso também considerar personificação? Abraço. Grato

     R: É assumida como natural, no campo literário, a relação de várias figuras de estilo, em termos do pensamento traduzido, às duas figuras-mãe: a metáfora e a metonímia. Dificilmente se falha quando uma destas é convocada.
      No caso em concreto, e uma vez que se trata apenas de uma instrução de identificação, deverão ser aceites ambas as respostas (metáfora e personificação). Na verdade, se a metáfora se encontra associada ao termo "coração", por motivos do sentimento e da emoção (coração como metáfora de sentimento), a personificação está focada na intencionalidade relacionada como o termo "refilar". O coração a refilar é a ideia de um sentimento personificado, com características humanas e o sentido da intencionalidade - com a intenção de contrariar, criticar, reagir.
       Fosse a questão outra, com os alunos a terem de explicitar a expressividade da figura de estilo, haveria a possibilidade de condicionar a resposta em função da justificação a dar.


      Não raras vezes nos deparamos com segmentos textuais, nos quais confluem vários recursos expressivos e/ou estilísticos. Sempre que tal acontece, a abertura a vários cenários de resposta é atitude a assumir, desde que os argumentos aduzidos na resposta sejam compatíveis com o recurso / a figura selecionada. Daí que, mais do que a identificação, seja desejável a explicitação da expressividade ou dos efeitos obtidos com o uso de tal recurso na mensagem.

       Claro que 'recursos expressivos' é uma designação mais abrangente para processos bem além das figuras de estilo; porém, no que a estas últimas diz respeito, personificação e metáfora andam bem alinhadas no exemplo transcrito.

terça-feira, 26 de novembro de 2019

Como se dúvidas houvesse

      As imagens são muito significativas da irracionalidade reinante nestes dias

      O que víamos há tempos em território americano chegou à Europa,... a Portugal,... a Matosinhos - corre o povo em cardume, direitinho ao anzol (que não vê), pensando no retalho de pano lindo que, vaidosamente, vai poder mostrar a todos:

Black Friday em Matosinhos (à moda de USA)

     Ainda há dias falava, nas aulas, sobre o Black Friday (que mais deve ser Black Days, já que nem de Friday nem de um só dia se trata), tudo a propósito de Vieira e do Sermão de Santo António. As semelhanças com a atualidade são inevitáveis, não fossem os peixes (seduzidos por um retalho de pano) metáfora dos homens (que se iludem com as falsas promoções).


     Outra coisa muito geral, que não tanto me desedifica, quanto me lastima em muitos de vós, é aquela tão notável ignorância e cegueira que em todas as viagens experimentam os que navegam para estas partes. Toma um homem do mar um anzol, ata-lhe um pedaço de pano cortado e aberto em duas ou três pontas, lança-o por um cabo delgado até tocar na água, e em o vendo o peixe, arremete cego a ele e fica preso e boqueando, até que, assim suspenso no ar, ou lançado no convés, acaba de morrer. Pode haver maior ignorância e mais rematada cegueira que esta? Enganados por um retalho de pano, perder a vida?!
     Dir-me-eis que o mesmo fazem os homens. Não vo-lo nego. Dá um exército batalha contra outro exército, metem-se os homens pelas pontas dos piques, dos chuços e das espadas, e porquê? Porque houve quem os engodou e lhes fez isca com dois retalhos de pano. A vaidade entre os vícios é o pescador mais astuto e que mais facilmente engana os homens. E que faz a vaidade? Põe por isca na ponta desses piques, desses chuços e dessas espadas dois retalhos de pano, ou branco, que se chama hábito de Malta, ou verde, que se chama de Avis, ou vermelho, que chama de Cristo e de Santiago; e os homens por chegarem a passar esse retalho de pano ao peito, não reparam em tragar e engolir o ferro. E depois disso que sucede? O mesmo que a vós. O que engoliu o ferro, ou ali, ou noutra ocasião ficou morto; e os mesmos retalhos de pano tornaram outra vez ao anzol para pescar outros.
     Por este exemplo vos concedo, peixes, que os homens fazem o mesmo que vós, posto que me parece que não foi este o fundamento da vossa resposta ou escusa, porque cá no Maranhão ainda que se derrame tanto sangue, não há exércitos, nem esta ambição de hábitos.
     Mas nem por isso vos negarei que também cá se deixam pescar os homens pelo mesmo engano, menos honrada e mais ignorantemente. Quem pesca as vidas a todos os homens do Maranhão, e com quê? Um homem do mar com uns retalhos de pano. Vem um mestre de navio de Portugal com quatro varreduras das lojas, com quatro panos e quatro sedas, que já se lhe passou a era e não têm gasto e que faz? Isca com aqueles trapos aos moradores da nossa terra: dá-lhes uma sacadela e dá-lhes outra, com que cada vez lhes sobe mais o preço; e os bonitos, ou os que o querem parecer, todos esfaimados aos trapos, e ali ficam engasgados e presos, com dívidas de um ano para outro ano, e de uma safra para outra safra, e lá vai a vida. Isto não é encarecimento. Todos a trabalhar toda a vida, ou na roça, ou na cana, ou no engenho, ou no tabacal; e este trabalho de toda a vida, quem o leva? Não o levam os coches, nem as liteiras, nem os cavalos, nem os escudeiros, nem os pajens, nem os lacaios, nem as tapeçarias, nem as pinturas, nem as baixelas, nem as jóias; pois em que se vai e despende toda a vida? No triste farrapo com que saem à rua, e para isso se matam todo o ano.
     Não é isto, meus peixes, grande loucura dos homens com que vos escusais? Claro está que sim; nem vós o podeis negar. Pois se é grande loucura esperdiçar a vida por dois retalhos de pano, quem tem obrigação de se vestir, vós, a quem Deus vestiu do pé até à cabeça, ou de peles de tão vistosas e apropriadas cores, ou de escamas prateadas e douradas, vestidos que nunca se rompem, nem gastam com o tempo, nem se variam ou podem variar com as modas; não é maior ignorância e maior cegueira deixarde-vos enganar ou deixarde-vos tomar pelo beiço com duas tirinhas de pano?
     Vede o vosso Santo António, que pouco o pôde enganar o mundo com essas vaidades. Sendo moço e nobre, deixou as galas de que aquela idade tanto se preza, trocou-as por uma loba de sarja e uma correia de cónego regrante; e depois que se viu assim vestido, parecendo-lhe que ainda era muito custosa aquela mortalha, trocou a sarja pelo burel e a correia pela corda. Com aquela corda e com aquele pano, pescou ele muitos, e só estes se não enganaram e foram sisudos.

Declamação e representação (adaptada) do sermão vieirino
por Marcelo Lafontana

       A atualidade e contemporaneidade da reflexão, com as devidas adaptações, impõem-se. Não se tratando de canibalismo puro, pouco falta. Talvez uma antropofagia social. Só porque há mais uns tostões, matam-se nas filas e nas multidões.

      O que foi escrito para o século XVII é visionário para os nossos tempos. Apetece dizer com Vieira que, ao Homem, parece ter sido dada a razão sem o uso; há animais que parecem ter mais o uso sem a razão. "Não é isto verdade? Ainda mal!"

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Relações... de risco homofónico

     Algumas podem resultar em ralações.

    Tudo depende do que um diz e o outro representa. No caso da homofonia, a situação pode ser crítica:

Um diálogo de risco homofónico

      Se o diálogo fosse escrito, não haveria tanta variedade de representação. As relações têm desta coisas, ainda mais quando, na língua, elas são mantidas entre a grafia (escrita) e a fonia (som, oralidade). Bem distinta na escrita e no significado, a homofonia pode acarretar expectativas bem diferenciadas no (n)amor(o).

      Para a próxima, é melhor pedir a resposta por escrito. Tudo por causa de piadas homofónicas.

domingo, 24 de novembro de 2019

Pontapés e futebol

         Só se fala do homem pelo grande feito futebolístico.

        Depois de conquistar a taça final dos Libertadores - principal campeonato de futebol da América do Sul, frente à equipa argentina do River Plate -, bem como o campeonato brasileirão, o Flamengo treinado por Jorge Jesus é equipa celebrada; Jesus, treinador endeusado.
      Na carreira ascendente ainda em terras lusas, a qualidade do treino não correspondeu à dos discursos. De tão comentado que foi pelo que dizia (mais propriamente pelos erros de fala cometidos), Jorge Jesus chegou a afirmar "Não sou Eça de Queirós" (como se alguma vez o tivesse de ser, para evitar tanto pontapé na correção da língua). Pelo que proferiu hoje, talvez devesse acrescentar que (também) não é Pedro Nunes ou, na forma alatinada, Petrus Nonius.
        É verdade que chegou ao Brasil, viu e venceu, qual Júlio César, mas não terá sido, seguramente, com cálculos matemáticos (muito menos os associados às medições do nónio):

Jorge Jesus, matematicamente falando

       Afirma-se como o catedrático do futebol. Na língua e na matemática está a precisar de aulas de apoio. Dezassete em dezasseis?! Dezassete mais dez (perdendo ou ganhando, tanto dá) resulta em dezasseis?!... E, portanto,... cerca de treze segundos de Matemática pura e... não percebi!

       Com exemplos destes, sublinham-se as múltiplas inteligências - nem todos temos as mesmas nem estão elas desenvolvidas da mesma forma. Jorge Jesus é grande no treino e na gestão desportiva, mas na língua e no cálculo..., portanto,... estou sem palavras!

sábado, 23 de novembro de 2019

Rimas incomuns

      Neste mês frio e chuvoso.

      Um dia de sol, dois ou três de chuva... assim têm sido os últimos tempos.
      Hoje, as cores do fim de tarde chamaram a atenção:

Tarde carregada junto à praia (Foto VO)

      E da imagem se compôs o texto - curto, antes que a chuva chegasse.

      Cores de um fim de tarde que
      se viu ameaçado pela chuva de
      um novembro invernoso, quando
      de outono ainda é, por enquanto.

      Nuvens sombrearam o dia sem
      o vigor do sol - escondido - nem
      o azul espelhado do alto céu no
      agitado, revolto mar. Acinzam-no!

      Imponente e ruidoso marulhar em
      subido e espumado leito, também!

      Só para que se saiba que nem só de léxico se compõe a rima.

      Que venham melhores dias e maior inspiração. O parco sol que nos visitou veio e foi; deixou o frio e a noite entrou.

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Descubra a(s) diferença(s)

       Há frases que não merecem estar mal escritas.

       Foi o que pensei assim que encontrei esta:

Frase com defeito na escrita

       Para figurar nesta "carruagem", teve de sofrer um pequeno grande reparo:

Frase no seu melhor (de sentido e de escrita)

       Se há sítio onde não se pode colocar vírgula é entre o sujeito da frase ("Os melhores apertos da vida") e o respetivo predicado ("são os abraços").

      Numa frase com tanto sentido, pede-se o melhor registo escrito.

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Cozinhar com alma

        No dia em que a fome é saciada com alma.

        Isto é o que cumpre dizer-se, depois de se ler...

Uma lousa muito recomendável, pela alma que tem
(A partir da foto de Sandra Andrade Reis)

      A placa anunciadora do repasto é um regalo para a comédia. À falta de melhor, acho que uma "almelete" caía bem! Deve ser uma amálgama, juntando as palavras alma e omolete.
     (A julgar pela última ementa aqui apontada, esta vem confirmar que a revolução ortográfica chegou à cozinha).

         A refeição promete. Falta saber se o estômago não se ressente.

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Ler o que não está escrito

     Volto ao Joker, mas, desta feita, nada a dizer do locutor ou da produção do programa.

     A questão é mesmo com o concorrente. Ao ler o que estava escrito na questão da ronda bónus, fê-lo erradamente. Leu conforme habitualmente se fala... mal.

Imagem da emissão de hoje do 'Joker', na RTP1 (Foto VO)

     Lá está o acento gráfico (agudo) na escrita da palavra; lá se identifica (e bem) a palavra como esdrúxula (ou proparoxítona). Ou seja, deve ler-se a palavra com incidência na sílaba destacada: diÓSpiro. Não como o concorrente a disse: diósPIro. É verdade que o comum dos falantes assim o faz (erradamente); até eu o fazia, por vezes, quando ia à feira e comprava nos agricultores da terra ou nas vendedoras de fruta. Se não o fizesse, ainda corria o risco de me dizerem "Olha, olha... o professor que não sabe falar". Eu até acho que sei, mas, se falasse como devia ser, ainda me atiravam com um diÓSpiro à cara.
    Há dias, cruzando-me com um ex-aluno na rua, dizia-me ele que ainda se lembra da aula em que aprendeu, no 12º ano, a dizer diÓSpiro. Se tiver visto o programa televisivo, também terá reparado como a escrita (cara) não bateu com a leitura (careta).

     Talvez seja uma questão de deriva da língua, da mudança que está em curso. Enquanto isso, vou à cozinha buscar e comer um diÓSpiro. Em pleno outono... o tempo dele.

terça-feira, 19 de novembro de 2019

"Do Porto / muito mais vivo que morto"

        No dia em que morre, celebra-se a música, a poesia, as artes.

      A herança de José Mário Branco é a do testemunho da qualidade musical e a da defesa dos valores democráticos e da liberdade. O compromisso com a música e a ideologia política é o exemplo de um homem para as gerações futuras, o de alguém que esteve preso por se ter engajado com um ideal de cultura e de política livres, contra um tempo de ditaduras e fascismos reinantes.
      Com o seu contributo e o de muitos outros companheiros de luta (Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Sérgio Godinho, entre outros), numa clandestinidade que ansiava pela mudança, lutou contra um regime, recorrendo às palavras do poeta Camões e a um refrão feito de (outras) "voltas" trocadas.

Filme com imagens de José Mário Branco (com poema camoniano)

       1942-2019, um percurso de 77 anos com essa amante que foi a música, que lhe deu muitas cantigas, algumas das quais encaradas como "uma arma contra a burguesia", um "alerta, às armas" ou a procura de "um mundo à justa medida".

       "Qual é a tua, ó meu?" Foste para longe, "P'ra muito longe / Onde nos vamos encontrar (/Com o que temos p'ra nos dar)". RIP.

domingo, 17 de novembro de 2019

Revolta na cozinha

      Se não for na cozinha, é na ementa.

    A troca de algumas pérolas do Português mal escrito é já uma prática constante entre alguns colegas de trabalho, sabedores de que aprecio esta nossa alternativa de escrita, meio popular meio desconcertante.
      A que me fizeram chegar recentemente é um primor de desortografia:

Apetece escrever "Uma imenta muito bariada"
(com agradecimento à TJ, por me ter feito chegar a foto)

   A revolta da escrita na cozinha ou na culinária?! Só escapa a pescada frita, mas sem o acompanhamento. Já o título se revelou um parto difícil; depois, nem com anestesia epidural isto lá vai: as tripas ficam com acento agudo (quando havia de ser grave); a moda fica quase em desuso, no atropelo da escrita do 'd', que resulta em grafema estranho; o arroz, coitado, virou palavra inexistente; as ervilhas, nem se fala (além de muito fonéticas no 'i' inicial, ficam com 'b', talvez porque sejam do 'nuorte, carago'!); a sardinha, para ser 'açada', deve sofrer de albinismo (segundo o dicionário e a eventual formação do adjetivo a partir de 'aça').

      A ementa na mica deixa-nos a micar bem. A escolha é difícil. Se a qualidade for na proporção da correção escrita, resta a pescada frita (só com salada)!

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Grave acentuar algumas graves

        É comum o erro de acentuação em palavras da mesma família.

       Não deixa de ser indesejável, quando poucas regras estáveis e elementares são ignoradas.Uma das mais básicas é a de não acentuar palavras graves terminadas em 'a' /'e' / 'o' seguidas ou não de 's'. Se 'autárquica' tem acento (por ser esdrúxula), o mesmo não sucede com 'autarquia' (grave); pelas mesmas razões, 'rápido' tem acentuação gráfica, mas 'rapidamente' já não: 'último' (adjetivo) não se pode confundir com 'ultimo' (forma verbal). São múltiplos estes casos da língua, muitos deles já comentados "nesta carruagem".
     Problema sério, diria, quase a justificar terapia (sem acento, por ser grave) ou abordagem terapêutica (com acento, por ser esdrúxula).

A Porquinha Terapeuta - (com agradecimento à IAA)

        Já no que ao 'terapeuta' diz respeito, volta-se a ter palavra grave, terminada em 'a', seguida ou não de 's'. Daí não ter acento gráfico.
       São tantos os locais que nos expõem ao erro que já chegamos ao ponto de frequentemente o gravar na memória, ou mesmo de grafar o impensável.
        Nos meios de comunicação social deveríamos ter o melhor dos exemplos. Lamentavelmente, não é o caso.

         Por regra, não se acentuam as palavras graves (terminadas em 'a/e/o'), exceto casos outros que escapem à dita regra. 'Terapeuta' não é exceção, por mais excecional que seja a porquinha no tratamento de quem tem medo de viajar de avião.

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Troca de palavras

       Bem que se justificava uma troca de palavras com o Sr. Palmeirim!

      Até aprecio o desempenho, o espírito cómico do homem nos programas televisivos que apresenta. Já no que toca aos reparos de seriedade que constrói, nem sempre a coisa cumpre o registo da correção. É demasiado brincalhão e a troca de palavras (não no sentido de conversação, mas de permuta, substituição) acontece de modo errado. 
     Hoje, no programa Joker (RTP1), a seriedade não condisse com a verdade dos factos linguísticos (pode mesmo dizer-se que, quanto a isto, não há novidade face aos apontamentos aqui produzidos sobre o concurso).
      Perante as hipóteses de escolha, a concorrente não é feliz (inclusivamente convocando para o jogo o Acordo Ortográfico, que nada tem a ver com a opção devida). Dizer que "Quezília" é a palavra mal grafada não tem sentido. A explicação do locutor, orientada para a opção correta, não é, porém, a melhor, ao associar 'obcecado' à palavra 'obsessão', chegando mesmo a proferir que «o substantivo obsessão leva o 's', mas quando passamos a 'obcecado' é verdade... [é com 'c']». Deus meu! Qual a relação?!
     Não é por colocar os olhinhos bem arregalados que o dito se torna facto (isto para não falar mesmo daquela classificação gramatical de 'substantivo', já um tanto desajustada em termos terminológicos).
    Obsessão (nome) corresponde ao adjetivo 'obsessivo' (não obcecado), senhor Palmeirim. Obcecado (adjetivo) está para o nome 'obcecação', não 'obsessão'. São famílias de palavras distintas e, nessa medida, justifica-se que a escrita com 's' se verifique em obsessão, obsessionar, obsessivo, obsessivamente; já o 'c' surge em obcecado, obcecador, obcecação, obcecadamente, obcecante, obcecantemente.
     Sem entrar pelo critério morfológico, este contraste de palavras obsessivo / obcecado justifica-se pela etimologia latina: o primeiro advém de 'obsessio, -onis'; o segundo de 'obcaecatus' (relacionado com 'cego', do latim 'caecus, -um'). História da língua, portanto.

       Pois é, senhor Palmeirim! Não tem que saber latim; porém, não aproxime o que, ortográfica e morfologicamente, não tem razão de ser.

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Modalidades

     O tempo escasseia, mas lá vai a resposta.

     Um pedido que não podia ficar sem resposta.

     Q: Bem que preciso da tua opinião. Achas que "Fomos autorizados a ver o espólio de Pessoa" é um bom exemplo para a modalidade deôntica (com sentido de permissão)? Tenho sérias dúvidas , mas é o que aparece numa sistematização do manual. Partilha lá comigo essa sapiência! Obrigada.

      R: A sapiência anda fraca e cansada, mas vamos lá a isso. 
    Tens sérias dúvidas e, no caso, tenho a certeza (mais uma modalidade - a epistémica, para qualquer das condições).
    Devo referir que a modalidade deôntica (por alguns linguistas denominada de intersujeitos) é aquela que está presente em enunciados que demonstram a relação do locutor com o seu interlocutor, com o primeiro a expressar sobre o tu / vós uma orientação, um conselho, um pedido, uma questão, uma ordem. Conforme a força e o poder representados, pode dizer-se que o valor modal se situa, neste tipo, entre a permissão e a obrigação.
      Ora, o exemplo proposto dá conta de um locutor que não age sobre o destinatário (nada lhe pede, pergunta ou permite; nada o obriga a fazer; nada o autoriza a nada). Assim sendo, não se trata de modalidade deôntica, por certo. O enunciado traduz uma situação que o eu / nós partilha ou dá a conhecer. Esta intencionalidade de quem fala / escreve não se confunde com o propósito de agir ou requerer algo do destinatário.
       Sem nada que mais o caracterize, vejo o exemplo como a expressão do locutor ou num registo de lamento (que pode ser associado à modalidade apreciativa, se acompanhada por uma entoação devida) ou numa partilha de informação / conhecimento (portanto, modalidade epistémica do certo).

      Em suma, não é um bom exemplo para ilustrar o tipo de modalidade sistematizado no manual nem para os alunos conseguirem classificar (dada a ausência de indicadores que permitam identificar a intenção de comunicação).

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Pelo centenário do nascimento

        À que foi à Grécia pela Granja,...
        
        À poeta que fez aliança com o mar, a praia, a rocha, o azul do céu e chegou ao tempo primordial e civilizacional da Antiguidade, fazendo rimar essa época com o espaço da justiça, com o canto poético em harmonia e refletida emoção, num feixe de luzes e numa paleta de claridades para a Humanidade.
      À arquiteta da palavra, do verso e da prosa que combinou a água e a luz com rochas, conchas, areais e maresias; a que fez da praia e do bosque um só palco para a escrita, qual anfiteatro com letras e sons em notas de paraíso e divindade à espera de serem desveladas.

"Mar Sonoro" de Sophia de Mello Breyner Andresen (Foto e filme VO)

     Sophia de Mello Breyner Andresen, aquela que, cem anos depois de ter nascido, continua prometida às ondas brancas e às florestas verdes, tendo na poesia a sua expressão maior de liberdade. Foi nela e por ela que atravessou "o deserto do mundo", viveu "em pleno vento", lutou "contra o abutre e a cobra" e cantou o amanhecer de abril. 
        Ansiou pelo tempo justo, de verdade e liberdade.

       ...não houve Cnossos, Delfos ou Creta que lhe dessem o berço, já que à vida veio por terras de Luso.

terça-feira, 5 de novembro de 2019

Esquecer o tempo... entre o tudo e o nada.

     É para amanhã, é para hoje, é para ontem...

     A urgência de tudo, porque tudo é importante e tudo é tudo!!!

     Eu, no meio de tudo, não sou nada.
     Começo a sentir que não dou para tudo.
     É tudo muito e eu sou pouco. Sinto-me nada!
     Talvez pretenda tudo, mas estou a achar que mais vale não querer nada.
     Paro com tudo, não faço nada. Fico a olhar o céu, as nuvens...
     Do sol, nada. Tudo molhado pela chuva.
     Até que ele aparece e, do nada, tudo fica diferente.


Paisagens marinhas com um toque de nuvem e sol (Fotos VO)

     As nuvens passaram, a dourada estrela deixa-se ver e torna-se tudo no momento.
     Em tudo o céu, o mar e o dia ficam melhores. Não é preciso mais nada.
     Se me disserem que isto não é nada, agora, eu grito que é tudo.
     Este deixar-se ficar no nada é bom. É tudo!
 
     Tudo começa a ser tão imenso para mim...
   
     Este pedacinho de nada foi tudo o que consegui nas últimas horas.
     De um lado para o outro, com tudo por fazer,
     Nada ou quase nada consigo resolver.
      Amanhã vou arrepender-me por não ter, por momentos, feito nada.
     Tudo me vai cair em cima.
     Nada posso já fazer, por causa do tudo que quis v(iv)er.

Sol escondido na nuvem, a brincar com o céu e o mar (Foto VO)

     Contudo, este momento de nada é bálsamo para tudo.
     Espero agora tudo cumprir para que nada fique por concluir.
     Talvez não tenha tempo para nada, mas foi um instante de tudo e nada.

     Tudo podia ser diferente!
     De nada adianta lamentar.

     Nada para já; tudo para depois...
   
     Por agora é tudo. Volto ao que hoje já devia estar pronto ontem. Por ora, nada!

domingo, 3 de novembro de 2019

Será que a Amélie vem aí?

        Dizem que a tempestade está para chegar a Portugal.

     Podia ter sido uma promessa, para afastar a anunciada intempérie; foi apenas um passeio para afastar as más energias, o cansaço e alguns sintomas doentios que persistem. E, agora, dizem que está a vir depressão! Coisa escusada! São ventos e chuvas que chegam para derrubar qualquer homem. Era bom que se dissipassem.
       A força da natureza está à vista: depois do sol tímido de um sábado e domingo, muda a cor do céu, a névoa surge, o vento esfria e o mar alteia. De longe, o branco das ondas ameaça pintar as paredes de uma capela, erguida sobre um rochedo, de costas voltadas para as fortes ondas. Em Miramar, a capela barroca do Senhor da Pedra não mira o mar; mira a terra. Impõe-se mais do que Pedro: é pedra sobre rocha, local de culto e peregrinação que, segundo um dos painéis de entrada, está erguido num espaço que terá remotamente recebido cultos pagãos de povos pré-cristãos. Persiste essa natureza natural e panteísta, pela envolvência do mar, da terra e do céu.

Capela do Senhor da Pedra, em Miramar (freguesia de Gulpilhares) - Foto VO

      Construída nos finais do século XVII (1686), a igreja é Património Mundial da UNESCO desde 1996. A sua forma hexagonal e a balaustrada exterior circundante, frequentemente rodeadas pela subida das marés, contribuem para um imaginário singular: o de um escolho santificado. A força da crença cruza-se com alguma sobrenaturalidade. Segundo os antigos, uma imagem de Cristo terá sido trazida pelo oceano: “Que num belo dia pousou sobre aquela pedra onde, mais tarde, veio a ser erguida a capela” (lê-se num outro painel, numa espécie de justificação do nome: “Senhor da Pedra”). No registo da lenda, quando os locais se preparavam para construir uma ermida ao Senhor da Pedra num terreiro conhecido por arraial, frequentemente era vista uma luz sobre os rochedos. A cada noite a luz misteriosa brilhava, pelo que os habitantes começaram a acreditar num sinal enviado do Céu. Assim, o ponto luminoso à beira-mar passou a ser o local de construção da capela. 
      O fantástico e o sobrenatural são ainda sulcados pelo espiritual e pelo religioso: na rocha, por atrás da capela, está incrustada uma marca semelhante a uma pegada de boi, que os habitantes da terra dizem ser de um animal bento (o boi que aquecia Jesus na manjedoura) que, também, por ali havia passado.

     As marcas nos penedos são uma constante nas lendas de cariz religioso. Natureza e fé são motivos para dar cor às religiões. A Amélie tem nome que (além de título para filme) dá para depressões.