Hoje o filme é mais atual, ainda que inspirado numa personagem da literatura americana dos finais dos anos trinta do século passado.
"A Vida Secreta de Walter Mitty", de James Thurber, é também o título para o filme dirigido e protagonizado pelo ator Ben Stiller - que dá corpo cinéfilo a uma personagem pertencente a um conto publicado não só na revista 'The New Yorker,' em 1939, como também em livro, três anos mais tarde.
Mitty é um homem tímido, preso à vida de um cargo de direção no departamento do banco de imagens / negativos fotográficos da revista 'Life'. Ainda assim, ou talvez por isso, revela-se um sonhador inofensivo, encetando fugas imaginativas para escapar à rotina, ao tédio ou aos tentáculos que o mundo real lhe lança: formulários que se tornam pré-requisito à construção de redes sociais / virtuais e que exigem vivências incríveis; chefias e grupos empresariais que impõem relações e valores muito desfasados da dignificação e da felicidade humanas; culto do medo, da pressão, dir-se-ia mesmo da perseguição pessoal inútil, descompensada e insensata, feita por quem menos tem para dar. Perante a adversidade da possível perda de emprego e o despedimento final, a atitude de Mitty é a de quem busca uma nova forma de encarar a vida: entre cenários de aventura e fantasia, o cumprimento de um dever profissional (que só lhe garante tranquilidade pessoal, apesar de não deixar de ser uma bofetada de luva branca a quem o dirige) e a construção de um percurso próprio que lhe alimentará a coragem para conquistar o amor da companheira de trabalho Cheryl Melhoff (numa representação de Kristen Wiig).
Em todo o seu percurso e nos desaires vividos, Mitty acaba por receber a ajuda de quem nunca o viu (como é o caso da voz do e-Harmony, corporizada por Andy Richter), de quem sempre soube que ele existiu e o acompanhou lateralmente na vida profissional (mãe, irmã, companheiro de arquivo e o fotógrafo Sean O' Connell) ou, então, de si próprio (na estratégia de autodescoberta que empreende, no jogo de memórias, ilusões e sonhos que acabam por compor a sua própria vida).
Assim se constrói um filme produzido no registo de uma comédia contida e na afirmação da possibilidade, da alternativa a um mundo e a uma sociedade que alguns pretendem alterar, controlar, impor, apesar de bem menos credível e desejável. Daí o público identificar-se com as fugas, os desejos, as vontades e os sonhos de Walter Mitty, ou "Major Tom" (o que se mantém fora de órbita, na perspetiva do novo superior de Mitty, numa referência a "Uma Odisseia no Espaço", filme datado de 1968 e realizado por Stanley Kubrick, no qual se dá conta do trajeto de um astronauta com receio de enfrentar o estranho e desconhecido território espacial).
Nesta linha se entende também a recuperação da música de David Bowie, "Space Oddity", aqui apresentada no vídeo original de 1969:
SPACE ODDITY
Ground control to Major Tom
Ground control to Major Tom
Take your protein pills and put your helmet on
(Ten) Ground control (Nine) to major Tom (Eight)
(Seven, Six) Commencing countdown (Five), engines on (Four)
(Three, Two) Check ignition (One) and may gods (Blastoff) love be with you
This is ground control to Major Tom, you've really made the grade
And the papers want to know whose shirts you wear
Now it's time to leave the capsule if you dare
This is Major Tom to ground control,
I'm stepping through the door
And I'm floating in a most peculiar way
And the stars look very different today
Here am I sitting in a tin can far above the world
Planet Earth is blue and there's nothing I can do
Though I'm past one hundred thousand miles, I'm feeling very still
And I think my spaceship knows which way to go
Tell my wife I love her very much, she knows
Ground control to Major Tom, your circuits dead, there's something wrong
Can you hear me, Major Tom?
Can you hear me, Major Tom?
Can you hear me, Major Tom?
Can you...
Here am I sitting in my tin can far above the Moon
Planet Earth is blue and there's nothing I can do
À semelhança dos gatos e do que deles diz o saber popular, este é o filme do homem das sete vidas - aquele que, apesar dos medos e no encalço da sua felicidade, termina de mão dada com o que o faz verdadeiramente feliz, e que que esteve sempre bem perto dele mesmo. Uma boa forma de terminar 2013.