sexta-feira, 10 de junho de 2016

Dia de Portugal

    Um feriado para um país, um poeta, uma comunidade...

    E bem que se pode multiplicar isto tudo, com um expoente onde caibam muitos outros países que falam a mesma língua, com vários poetas a (re)criá-la e muitos falantes a potenciá-la.
    Dedicado o feriado a Camões (pela suposta data da sua morte, em 1580), hoje vamos para lá deste grande poeta, ao encontro de um outro que, escrevendo sobre o país, também cultivou a língua portuguesa no que ela tem de mais poético. Podia ser Pessoa, mas também não vou ficar por aí.
     Falo de Miguel Torga e de "Portugal":

          PORTUGAL 

Avivo no teu rosto o rosto que me deste, 
E torno mais real o rosto que te dou. 
Mostro aos olhos que não te desfigura 
Quem te desfigurou. 
Criatura da tua criatura, 
Serás sempre o que sou. 

E eu sou a liberdade dum perfil 
Desenhado no mar. 
Ondulo e permaneço. 
Cavo, remo, imagino, 
E descubro na bruma o meu destino 
Que de antemão conheço: 

Teimoso aventureiro da ilusão, 
Surdo às razões do tempo e da fortuna, 
Achar sem nunca achar o que procuro, 
Exilado 
Na gávea do futuro, 
Mais alta ainda do que no passado. 

Miguel Torga, in Diário X

     Um poema sobre o país (que dele tem o título) e sobre o que é ser português, nomeadamente no que às ideias do sujeito poético diz respeito. Afinal, a fronteira entre Portugal e Ser Português é tão ténue e inconstante quanto a linha que separa as águas do rio a desaguarem no mar.
    Portugal tem o rosto de todos os que nele vivem ou com ele querem viver, para lá dos seus limites fronteiriços. Portugal é terra, é projeto atlântico, mar intercontinental e imaginário - dir-se-ia, com Pessoa, que há muita inconsciência, ilusão, utopia (a ponto de nele caber um 'Quinto Império').
       Ao longo de três estrofes (no mesmo número das sílabas para designar o país), traçam-se linhas temáticas significativas: a identidade do 'eu' com o 'tu', numa representação de interação do sujeito poético com a pátria (personificada), na sua intemporalidade; a identidade do 'eu' com os rostos que compõem a dimensão pátria, cultural e também universal desse país voltado para o mundo, na sua língua e na relação com as referências e a matriz de uma cultura europeia; o posicionamento do 'eu' face a «as razões do tempo e da fortuna», sem controlo e sem limites; o entendimento do 'eu' sobre o futuro (essa gávea "Mais alta ainda do que no passado" - um verso a fazer ecoar Pessoa e a visão de uma utopia, da felicidade típica do mito do Quinto Império (que Pre. António Vieira idealizou; um futuro típico da inconsciência libertadora face ao mundo consciente, real e demasiado comum). 
      Portugal voltado para o futuro, objeto de procura constante, busca infindável - daí o verso "Achar sem nunca achar o que procuro".

      Assim se cumpre mais um feriado: num país feito de gente(s) que o aviva(m), que o toma(m) na singularidade que enriquece o mundo, ao longo de séculos e gerações e segundo um destino, um fado feito da diáspora conseguida e do que ainda está para vir. Um presente que confirma o passado e anseia por um futuro promissor (quanto mais não seja para se poder libertar da dor).

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