A rima do título reflete a alegria da reconquista de um tempo livre, há quatro anos negada.
É como se a restauração (não da soberania portuguesa, mas do feriado) nos animasse, depois da perda (não da independência, mas de novo, do feriado). Historicamente não foi tempo de descanso; o presente, para alguns, também não o é na plenitude. Ainda assim, é feriado para bem de alguns dos que trabalham.
Depois de muito recentemente Filipe VI de Espanha e Dona Letícia terem visitado Portugal e de ambos terem partido ontem de terras lusas, desta feita não há "conjurados" nem ninguém é lançado da janela do Palácio da Ribeira. Não há coincidências, neste capítulo. Os tempos são de diplomacia e de boas relações políticas entre a monarquia espanhola e a república portuguesa (às vezes, a conjura necessária está mais para dentro do que para estrangeiros).
Não sendo "o dia dos milagres", assim foi romanescamente encarado quando Francisco Moita Flores, em 2015, deu a ler a história da velha Efigénia Pé de Galinha - personagem que vive o período histórico compreendido entre a perda do rei D. Sebastião e a restauração da independência face a Filipe IV de Espanha (III de Portugal). Entre 1578 e 1640 é tempo de uma jovem cobiçada ser tomada por bruxa, não fosse ela vítima de múltiplos dissabores, infortúnios que o destino coloca ao ser humano a ponto de o afastar das alegrias dos afetos e de o marcar para a vida (que mais parece morte adiada). Contrariamente, há um duque que chega a rei, por uma força e um sentido de pátria no mínimo desafiador:
"Há uma Pátria que vai para além de um Reino. É feita com a argamassa do tempo, dos dias de maior sofrimento, que é um território de pertença sem limite, qual oceano a perder-se no horizonte. É qualquer coisa mais densa do que o chumbo e bem mais leve do que uma pena de falcão a esvoaçar pelos ventos. É maior do que um sentimento, do que uma ascendência e do que grandes conquistas e descobertas. É uma Pátria que se diz, que vive dentro de nós, que reconhece cada rua e cada praça como nossos, tão nossos que só nos conhecemos porque essa rua e essa praça existem e são marcos por onde se escoam os dias das nossas vidas. Podemos ver as montanhas e os desfiladeiros de um Reino qualquer, mas não veremos nunca a Pátria que vive dentro de nós. Dizemo-la, amamo-la, por ela poderemos morrer, e será sempre um tempo que não começa nem termina. Que habita em nós como se respira, como se ama e até como se morre. É, afinal de contas, o âmago do nosso ser. A dimensão espiritual mais sublime que dá significado à existência. É um exército de odores e de palavras, de cantares e de memórias comuns. É amor ao passado, àquilo que fomos e fome de futuro.
Assim se explicava no dia seguinte o duque de Bragança a Luísa. Falava-lhe do amor transcendente que une gente tão diversa, apenas irmanada pela mesma fala. Porém, a jovem duquesa revelava agora as inquietações que escondera durante a noite anterior, cheia de emoções e de amor.
- E nós o que fazemos? Faltam cinco dias e ficamos aqui? Parados? Não é preciso fazer mais nada?
- Saber esperar é um dom divino - respondeu João.
Levantou-se da mesa, ainda mais agitada com a resposta do marido. (...)
- Está tudo pronto, minha querida. Tudo pronto! - suspirou enigmaticamente.
- Tudo pronto, como?
- Está em alerta quem deve estar e planeado o que tem de ser previsto, não existe mais nada de que nos possamos ocupar - ia terminar, hesitou e depois recomeçou: - Sabes o que há a fazer? É sermos soldados do silêncio.
- Tenho de me calar, queres tu dizer.
- A surpresa é a única arma de um Reino sem exército contra o maior exército do mundo. Filipe tem dezenas de milhares de soldados experimentados por anos e anos de guerra. Nós temos quarenta conjurados, alguns deles já envelhecidos, e a vontade do povo de Lisboa.
Sentou-se devagar. Os contrastes que João lhe apresentava eram de tal modo poderosos que tudo lhe parecia uma enorme loucura.
- Só quarenta? - foi a única coisa que conseguiu perguntar.
- E a maior parte deles nunca aprendeu a arte de esgrimir, nem a manipular um mosquete.
Agora percebia melhor as palavras do marido sobre o sentido da Pátria. (...)
Luísa desanimou por momentos.
- Visto assim, parece impossível.
- É quase impossível. A janela da esperança abriu-se quando os astros se combinaram de tal forma que foi possível acreditar nessa única arma, embora eficaz, que é a surpresa. (...)
- Falas dos astros como se tivéssemos um destino já traçado para cumprir.
João de Bragança sorriu em discordância.
- Soubesse eu que o nosso destino estava traçado e não teria hoje a fama de hesitante entre alguns dos amigos. É preciso ter a astúcia da raposa, a paciência da coruja e a determinação de um lobo para forçar o caminho que trilhamos - disse João, como se pensasse em voz alta.
(...) A expressão do duque mudou. Regressava a gravidade preocupada e admitia, com algum pudor, que era grande o esforço para não seguir a excitação da duquesa. Fervia por dentro, adornado com uma máscara de serenidade. As horas tinham agora passo de caracol, os dias pareciam eternos, aquele sol mole, preguiçoso e frio tornara-se tão vagaroso como se o Verão estivesse à porta."
Por mais ficcionais que os acontecimentos se apresentem, alguma coisa houve para um pequeno se afirmar diante de um poderoso; para os poucos quarenta enfrentarem uma força que parecia invencível.
Talvez uma lição para a vida; para estes tempos tão dominados por forças omnipotentes que ameaçam a felicidade e a liberdade a que muitos aspiram, para poderem (sobre)viver menos enleados nas teias de interesses transnacionais.
Depois de muito recentemente Filipe VI de Espanha e Dona Letícia terem visitado Portugal e de ambos terem partido ontem de terras lusas, desta feita não há "conjurados" nem ninguém é lançado da janela do Palácio da Ribeira. Não há coincidências, neste capítulo. Os tempos são de diplomacia e de boas relações políticas entre a monarquia espanhola e a república portuguesa (às vezes, a conjura necessária está mais para dentro do que para estrangeiros).
Não sendo "o dia dos milagres", assim foi romanescamente encarado quando Francisco Moita Flores, em 2015, deu a ler a história da velha Efigénia Pé de Galinha - personagem que vive o período histórico compreendido entre a perda do rei D. Sebastião e a restauração da independência face a Filipe IV de Espanha (III de Portugal). Entre 1578 e 1640 é tempo de uma jovem cobiçada ser tomada por bruxa, não fosse ela vítima de múltiplos dissabores, infortúnios que o destino coloca ao ser humano a ponto de o afastar das alegrias dos afetos e de o marcar para a vida (que mais parece morte adiada). Contrariamente, há um duque que chega a rei, por uma força e um sentido de pátria no mínimo desafiador:
"Há uma Pátria que vai para além de um Reino. É feita com a argamassa do tempo, dos dias de maior sofrimento, que é um território de pertença sem limite, qual oceano a perder-se no horizonte. É qualquer coisa mais densa do que o chumbo e bem mais leve do que uma pena de falcão a esvoaçar pelos ventos. É maior do que um sentimento, do que uma ascendência e do que grandes conquistas e descobertas. É uma Pátria que se diz, que vive dentro de nós, que reconhece cada rua e cada praça como nossos, tão nossos que só nos conhecemos porque essa rua e essa praça existem e são marcos por onde se escoam os dias das nossas vidas. Podemos ver as montanhas e os desfiladeiros de um Reino qualquer, mas não veremos nunca a Pátria que vive dentro de nós. Dizemo-la, amamo-la, por ela poderemos morrer, e será sempre um tempo que não começa nem termina. Que habita em nós como se respira, como se ama e até como se morre. É, afinal de contas, o âmago do nosso ser. A dimensão espiritual mais sublime que dá significado à existência. É um exército de odores e de palavras, de cantares e de memórias comuns. É amor ao passado, àquilo que fomos e fome de futuro.
Assim se explicava no dia seguinte o duque de Bragança a Luísa. Falava-lhe do amor transcendente que une gente tão diversa, apenas irmanada pela mesma fala. Porém, a jovem duquesa revelava agora as inquietações que escondera durante a noite anterior, cheia de emoções e de amor.
- E nós o que fazemos? Faltam cinco dias e ficamos aqui? Parados? Não é preciso fazer mais nada?
- Saber esperar é um dom divino - respondeu João.
Levantou-se da mesa, ainda mais agitada com a resposta do marido. (...)
- Está tudo pronto, minha querida. Tudo pronto! - suspirou enigmaticamente.
- Tudo pronto, como?
- Está em alerta quem deve estar e planeado o que tem de ser previsto, não existe mais nada de que nos possamos ocupar - ia terminar, hesitou e depois recomeçou: - Sabes o que há a fazer? É sermos soldados do silêncio.
- Tenho de me calar, queres tu dizer.
- A surpresa é a única arma de um Reino sem exército contra o maior exército do mundo. Filipe tem dezenas de milhares de soldados experimentados por anos e anos de guerra. Nós temos quarenta conjurados, alguns deles já envelhecidos, e a vontade do povo de Lisboa.
Sentou-se devagar. Os contrastes que João lhe apresentava eram de tal modo poderosos que tudo lhe parecia uma enorme loucura.
- Só quarenta? - foi a única coisa que conseguiu perguntar.
- E a maior parte deles nunca aprendeu a arte de esgrimir, nem a manipular um mosquete.
Agora percebia melhor as palavras do marido sobre o sentido da Pátria. (...)
Luísa desanimou por momentos.
- Visto assim, parece impossível.
- É quase impossível. A janela da esperança abriu-se quando os astros se combinaram de tal forma que foi possível acreditar nessa única arma, embora eficaz, que é a surpresa. (...)
- Falas dos astros como se tivéssemos um destino já traçado para cumprir.
João de Bragança sorriu em discordância.
- Soubesse eu que o nosso destino estava traçado e não teria hoje a fama de hesitante entre alguns dos amigos. É preciso ter a astúcia da raposa, a paciência da coruja e a determinação de um lobo para forçar o caminho que trilhamos - disse João, como se pensasse em voz alta.
(...) A expressão do duque mudou. Regressava a gravidade preocupada e admitia, com algum pudor, que era grande o esforço para não seguir a excitação da duquesa. Fervia por dentro, adornado com uma máscara de serenidade. As horas tinham agora passo de caracol, os dias pareciam eternos, aquele sol mole, preguiçoso e frio tornara-se tão vagaroso como se o Verão estivesse à porta."
in O Dia dos Milagres, Casa das Letras, 2015, pp. 155-159
Por mais ficcionais que os acontecimentos se apresentem, alguma coisa houve para um pequeno se afirmar diante de um poderoso; para os poucos quarenta enfrentarem uma força que parecia invencível.
Talvez uma lição para a vida; para estes tempos tão dominados por forças omnipotentes que ameaçam a felicidade e a liberdade a que muitos aspiram, para poderem (sobre)viver menos enleados nas teias de interesses transnacionais.
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