Saí de uma câmara de morte com tudo para a vida, à boa maneira existencialista.
"In camera" (Huis Clos, no título francês) é o espetáculo levado à cena pelo In skené - grupo de Teatro de Amadores de Gondomar, até ao próximo dia 22, na Sala Monte Crasto - Multiusos de Gondomar.
Apoiado no texto de Jean-Paul Sartre, pela tradução de Sofia Araújo e encenação de João Ferreira, há um percurso dramatúrgico a que os espectadores não são estranhos: o do acordar para a vida; o das máscaras colocadas nas caras e o dos jogos de força e sedução levados a cabo na existência; o dos caminhos dirigidos a um só fim. E depois...
A sugestão do vazio, do gelo, da gota que cai continuamente no balde de metal cruza-se com uma luz que dá a ver o que se foi e o que se descobre ser, como se todo o passado tivesse sido vivido em mera sombra. Libertos da caverna, e como se do mito platónico se tratasse, essa mesma luz fere, encandeia, até que dá a ver o que nem sempre se quer.
Tudo meticulosamente preparado, colocado à disposição de um tempo eterno, feito de renovada estabilidade, qual estátua sem possibilidade de mudança.
Em torno e ao nível de um palco que também é o do espectador (com um pé na vida real e outro na ficção pós-morte), o vazio vai sendo ocupado por uma angústia tão existencialista quanto desafiante nas forças, nos desconcertos e nos limites. Três passados, três existências dominadas por traços viciosos ou defeitos (Garcia, Inês e Estela) são discutidos, confrontados e analisados até à consciencialização do absurdo de um destino colocado frente aos olhos de todos, mas que ninguém parece querer ver.
Com a obra, Sartre põe o dedo na ferida; com a peça, torna-se presente todo o ser, vivificam-se a ironia e o sarcasmo que destroem tantas máscaras da existência; arrancam-se risos denunciadores da avaliação de páginas de vida (redescobertas na morte), particularmente naquilo que elas já não podem mais ser ou fazer. Resta-lhes não poder escapar a um ciclo que se fecha, se repete na clausura: a de uma porta que, mesmo aberta, não é trespassada, por causa do que cada um interpreta de si mesmo e dos outros.
Nessa condição, abandona-se a câmara, regressa-se à vida já não com a luz do dia, mas o escuro que impede o ser humano de ser transparente. Clara foi a qualidade do texto; das palavras recriadas no drama; das vozes escutadas; das representações a refletir, na perfeição, a atitude de desorientação e confusão face às vivências, bem como a fazer cair o "em-si" (recuperando o conceito filosófico de Sartre para a existência do mundo, nada mais sendo para além do que simplesmente se é) num "para-si" (mais do domínio da consciência analítica do espectador). Fragmentos de vida que só pela ficção se situam após a morte. Mais uma ótima representação do 'In skené'.
Apoiado no texto de Jean-Paul Sartre, pela tradução de Sofia Araújo e encenação de João Ferreira, há um percurso dramatúrgico a que os espectadores não são estranhos: o do acordar para a vida; o das máscaras colocadas nas caras e o dos jogos de força e sedução levados a cabo na existência; o dos caminhos dirigidos a um só fim. E depois...
Vídeo de Ricardo Pita
Tudo meticulosamente preparado, colocado à disposição de um tempo eterno, feito de renovada estabilidade, qual estátua sem possibilidade de mudança.
Em torno e ao nível de um palco que também é o do espectador (com um pé na vida real e outro na ficção pós-morte), o vazio vai sendo ocupado por uma angústia tão existencialista quanto desafiante nas forças, nos desconcertos e nos limites. Três passados, três existências dominadas por traços viciosos ou defeitos (Garcia, Inês e Estela) são discutidos, confrontados e analisados até à consciencialização do absurdo de um destino colocado frente aos olhos de todos, mas que ninguém parece querer ver.
Com a obra, Sartre põe o dedo na ferida; com a peça, torna-se presente todo o ser, vivificam-se a ironia e o sarcasmo que destroem tantas máscaras da existência; arrancam-se risos denunciadores da avaliação de páginas de vida (redescobertas na morte), particularmente naquilo que elas já não podem mais ser ou fazer. Resta-lhes não poder escapar a um ciclo que se fecha, se repete na clausura: a de uma porta que, mesmo aberta, não é trespassada, por causa do que cada um interpreta de si mesmo e dos outros.
Nessa condição, abandona-se a câmara, regressa-se à vida já não com a luz do dia, mas o escuro que impede o ser humano de ser transparente. Clara foi a qualidade do texto; das palavras recriadas no drama; das vozes escutadas; das representações a refletir, na perfeição, a atitude de desorientação e confusão face às vivências, bem como a fazer cair o "em-si" (recuperando o conceito filosófico de Sartre para a existência do mundo, nada mais sendo para além do que simplesmente se é) num "para-si" (mais do domínio da consciência analítica do espectador). Fragmentos de vida que só pela ficção se situam após a morte. Mais uma ótima representação do 'In skené'.
Pois que dizer quando tudo já foi dito e bem dito?
ResponderEliminarHá apenas a realçar (pelo meu sentir da peça) dois aspetos e, por isso, dividirei este meu comentário em duas partes (já pareço o padre António Vieira!).
Primeiro aspeto: fartei-me de rir! Confesso que inicialmente temi o pior, que a representação poderia ser maçadora, adjetivo, em parte, justificado pelo meu estado de espírito, ou melhor, de cansaço. A solidão inicial de Garcia e a imposição da presença e da ausência do criado (sempre vigilante, sempre atento e dando sempre corda, neste caso água, para que as personagens pudessem enganar o calor que diziam sentir ou sentiam e mergulhar assim na suas almas) fizeram-me crer que teria de ativar em mim níveis de atenção que me permitissem acompanhar o ritmo (que julguei lento, no início) do que iria passar-se em cena. Mas a Estela (Que personagem! E que representação!) veio provocar o desequilíbrio inerente aos grupos de três, contribuindo assim para um maior dinamismo. Fartei-me de rir! Lembrei-me das peças vicentinas, revi-as aqui(de certo modo) e verifiquei que, mesmo sendo existencialista, Sartre seguiu à linha a máxima "Ridendo castigat mores"!
Fartei-me de rir!
Segundo aspeto: a ausência aparente e propositada de um adereço fundamental, que não estando fisicamente lá, estava, de facto, lá - o espelho.
Vários espelhos, dentro e fora da representação.
Espelho meu, espelho meu, diz-me lá quem é mais pecador(a) do que eu?
"Eu até nem sei por que estou aqui! Houve engano! O pessoal da receção não me pareceu lá muito competente." (citação livre, fruto da memória cansada).
Ah, a Estela! A primeira a pedir o espelho. A que mais máscaras "vestia". A inocente que revela uma crueldade, despida de valores, como só as crianças conseguem ter.
A Inês que se oferece para espelho literal da outra e que será espelho de todos, como os outros sê-lo-ão a seu turno. A mais genuína na sua maldade e perversidade, a mais provocadora e atrevida, a primeira a perceber as regras deste novo jogo, talvez, porque o tenha jogado tantas vezes...
O Garcia que é obrigado a rever a sua conduta, aparentemente heroica, a aceitar a sua cobardia, a revelar aquela fragilidade tão nossa que consiste em vermos nos olhos dos outros (dos que amamos) a aceitação das nossas limitações, a necessidade de sermos amados e de pertencermos a alguém, seja a mulher (que se manipula), seja o colega de trabalho (que se admira e cujo reconhecimento buscamos), seja a amante viva ou morta que nos ama incondicionalmente na nossa cobardia.
Revi-me em todas estas personagens.
Revi alguns dos que comigo caminham, até a "N. Linha da Fr...Ginha" revi no criado, sempre discreto, mas vigilante e manipulador no zelo com que cuidava do espaço e dos "ausentes", como diria a Estela, que "viviam" em cena.
Gostei!
E mais não digo que já falei muito.
Fico à espera de umas Sombras que prometem uma noite diferente.
beijinho
IA
Ai, anónima, morri!
EliminarEssa de comparar o valete, tornado barman na peça, com a N. Linha da Fr...Ginha fez-me rir. É a prova provada de que "L'enfer, c'est les autres!", como diria o Garcia.
Sartre sabia o que fazia, até pelos ecos de alguma coisa socrática que nele há. É muito saber... e qualquer aproximação vicentina é apenas uma herança já a meio caminho.
Contrariamente ao provérbio, é muito riso para imenso siso.
Também eu digo, com um toque mais global: que Est(r)ela(s)!