quinta-feira, 5 de junho de 2014

Na confluência de vozes e de discursos

     Altura de concluir trabalhos... dá nisto!

  O contacto de hoje centra-se num conteúdo já aqui abordado, no que à modalidade dos discursos representados na narrativa diz respeito.

    Q: Sr. professor, li alguns dos seus trabalhos no blog e gostava que me ajudasse num trabalho. Preciso de um exemplo do discurso indireto livre na obra Memorial do Convento.


    R: Entre as várias formas de relatar, a do discurso indirecto livre identifica-se com a modalidade na qual coexistem marcas (contextuais) de dois discursos distintos: o de quem relata (cita) e o de quem é citado.
     Normalmente, esta modalidade caracteriza-se pelo seguinte:
     . ausência ou apagamento de subordinação entre o discurso citante (na voz do narrador) e o que é citado (na voz da personagem); 
    . compresença de elementos referentes aos contextos dos dois discursos (tomados como um na mistura de duas vozes que aparecem em uníssono, numa espécie de jogo polifónico); 
   . manutenção de marcas deíticas, expressivas; de traços de oralidade e/ou subjetividade associados ao discurso da personagem citada em contiguidade com o discurso citante (do narrador).
       Assim, no caso do Memorial do Convento, de José Saramago, pode ser considerado o segmento seguinte, particularmente o sublinhado:

"Enfim, chegou o dia da inauguração, dormira D. João V no palácio do visconde, guardando-lhe as portas o sargento-mor de Mafra, com uma companhia de soldados auxiliares, posto o que não quis perder Baltasar o ensejo e foi falar aos tropas, mas não lhe valeu a pena, ninguém o conhecia, e que queria ele, que ideia foi aquela de vir falar de guerras em tempo de paz, Homem não me esteja a empachar a porta, que daqui a pouco sai el-rei, dito o que subiu Baltasar ao alto da Vela, ia Blimunda com ele, e tiveram sorte, que puderam entrar na igreja, nem todos vieram a gabar-se disso, e era um pasmo lá dentro,...”
(in op. cit., 33ª edição, cap. XII, pág. 133-134) 

    Neste sublinhado evidencia-se a continuidade de um discurso do narrador (anterior ao sublinhado) com as marcas típicas de estruturas de uma oralidade / interrogativa que corresponde ao discurso produzido pelos soldados (sem a subordinação habitual que implicaria a presença, por exemplo, de um verbo introdutor do relato do discurso - "e perguntaram-lhe que queria ele..."), mas sem ser o direto: o imperfeito (queria), a manutenção da terceira pessoa e dos anafóricos ("aquela") impossibilitam este último.
       Um outro exemplo aproximado pode ser encontrado no seguinte excerto:

"Entretanto, se é dia, estarão dormindo a sesta os maridos ingénuos, ou que fingem sê-lo, e se noite é, quando soturnamente as ruas e as praças se enchem de multidões que cheiram a cebola e a alfazema, e o murmúrio das orações sai pelas portas escancaradas das igrejas, se é noite, mais descansados se sentem, porque assim a demora não será tanta, já se ouviu bater a porta, soaram os passos na escada, vêm falando familiarmente a ama e a criada, pudera não, ou a escrava preta, se a levou, e pelas frinchas dançam as luzes da palmatória ou do candil, finge o marido que acorda, finge a mulher que o acordou, e se ele pergunta, Então, já sabemos o que ela responderá, que vem morta de canseira, moidinha dos pés, arrastadinha dos joelhos, mas consolada a alma, e diz o misterioso número, Sete igrejas visitei, tão apaixonadamente o disse que ou foi a devoção muita ou muita a falta dela.”
(in op. cit., 43ª edição, cap. III, pág. 31) 

    De novo, com o sublinhado é possível comprovar a coexistência de marcas do discurso do narrador com o discurso da personagem: à subordinação típica do discurso de quem relata ("ela responderá que vem…"), à terceira pessoa usada pelo narrador para se referir ao discurso de uma mulher juntam-se os diminutivos da voz da própria mulher citada ("moidinha" / "arrastadinha"); a enumeração das sequências relativas ao cansaço (também representados na voz e no discurso dela), o segmento “consolada a alma” com duplicidade de leitura - entre o prazer / a satisfação na voz da mulher e/ou a ironia pressentida na posição do narrador face ao relatado / citado. Caso para dizer que a fronteira entre discursos distintos sai esbatida, se não for anulada, como no último aspeto focado.
      Ainda assim, neste último caso, não é o discurso de uma narrativa e de uma narração preteritamente situadas que introduz a voz pressentida da personagem (detetável apenas no primeiro exemplo). Em contrapartida, surge uma presentificação explorada pelo narrador (na sua cumplicidade com o narratário e/ou leitor: "já sabemos") numa estratégia crítica, irónica que junta o coloquialismo da situação e da relação narrador-narratário (no discurso direto assumido pelo primeiro para com o segundo) à reprodução de uma voz da personagem mulher, em situação de produção discursiva distinta (mas recuperada para o discurso do narrador, numa aproximação ao que mais pode ser designado como 'discurso direto livre', pela combinação de referências deíticas diferenciadas: a representada na relação narrador-narratário; a construída para as personagens mulher-marido).

     Exemplos de modalidades e de uma polifonia discursiva, que refletem várias vozes que se misturam, se sobrepõem, compondo um mosaico que o leitor deve observar, ler e atentamente ouvir, numa representação consentânea das potencialidades que o narrador-orador tão bem gere e funcionaliza na arte de contar histórias.

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