É um facto que a realidade está muito longe de ser simples ou favorecedora do que haja simplesmente de bom.
Assim o propõe o cartoonista americano Bill Watterson numa das vinhetas da sua banda desenhada com as personagens Calvin & Hobbes (o jovem rapaz de seis anos que se faz acompanhar do seu tigre de estimação), numa frase com variedade do português do Brasil.
Só espero que a minha resposta não esteja a simplificar demasiado... nem a complicar... para ficar pela virtude.
Q: Boa noite, Vítor.
Hoje gostaria de lhe pedir uma ajuda em relação à análise sintática da frase " Observar a realidade dos desfavorecidos é um dos temas da sua poesia!" (a propósito do estudo de Cesário Verde). "Observar a realidade dos mais desfavorecidos" é o sujeito da frase, certo? E "dos desfavorecidos" será complemento ou modificador do nome? Parece-me que será modificador restritivo, mas nem todos os colegas concordam.
Grata pela atenção e um bem-haja por todo o trabalho desenvolvido.
R: Viva.
Muito obrigado pelas palavras que me dirige e que, naturalmente, me deixam contente por poder ajudar alguém com estes meus contributos.
Genericamente, e no que respeita aos complementos de nome, houve já apontamentos que trataram a questão e apontaram para uma tipologia de nomes implicados. O que está em causa é o facto de, similarmente aos verbos, haver nomes que selecionam argumentos (os quais, no sintagma nominal, funcionam como complementos - função sintática interna). Tais nomes apresentam um sentido que implica uma relação com outra entidade – p. ex. ‘amigo / pai / filho / irmão’ (> de alguém); ‘fatia’ (de alguma coisa); ‘autor’ (> de alguma coisa / obra); ‘consequência’ (> de algo).
Quanto ao exemplo proposto, começo por confirmar que o segmento ‘Observar a realidade dos mais desfavorecidos’ é efetivamente o sujeito sintático da frase matriz (com a configuração de uma subordinada não finita infinitiva), para o predicado ‘é um dos temas da sua poesia’.
No interior desse sujeito encontra-se um grupo nominal (‘a realidade dos desfavorecidos’) cujo núcleo (‘realidade’) se encontra expandido pelo segmento ‘dos desfavorecidos’.
O nome ‘realidade’ não é considerado em nenhuma das tipologias anteriormente referidas. Ainda que não exaustivamente, retomo aqui os casos mais comumente mencionados para nomes que selecionam complementos:
. nomes relacionados com situações eventivas, com participantes (ex.: casamento, chegada, invasão) ou com localização temporal e espacial específica (ex.: boda, concerto, cortejo, doença, espetáculo, evento, férias, tempestade, noite, dia, capital, presidente, rei);
. nomes que denotam estados psicológicos de um experienciador (ex.: alegria, amor, angústia, desejo, fúria, medo , temor):
. nomes de parentesco (ex.: pai, mãe, filho, irmão, tio, avô…);
. nomes respeitantes a relações institucionais ou sociais (ex.: amigo, colega, companheiros, professor, sócio) ou noções relativas ao âmbito de atuação ou de responsabilidade de alguém (ex.: chefe, ministro, porteiro, criado, dono, proprietário);
. nomes associados a representações visuais ou gráficas (ex.: descrição, desenho, fotografia, imagem, quadro, radiografia…);
. nomes que representam obras culturais (ex.: artigo, capítulo, filme, história, livro, ópera, quarteto, relatório, sinfonia, trabalho) associadas a um autor (no papel semântico de agente);
. nomes que denotam relações do tipo parte-todo (ex.: final, início, suplemento, braço, …) ou propriedades de pessoas ou objetos (ex.: altura, conteúdo, contorno, idade, extensão, forma, força, medida, peso, preço).
Em nenhum destes casos cabe o termo 'realidade'.
Mesmo que fosse considerado o cenário de estarmos próximos de uma nominalização de qualidade (também tipicamente orientado para a complementação de nomes, construídos a partir de um adjetivo: ‘real’ > realidade), tal não se efetiva segundo o sentido transmitido pelo enunciado proposto. O segmento ‘a realidade dos desfavorecidos’ não significa necessariamente que ‘Os desfavorecidos são reais’ (tal como em ‘a beleza da jovem’, que apresenta um nome expandido por um complemento, por o núcleo nominal se associar ao adjetivo ‘bela’ e permitir a paráfrase ‘A jovem é bela’); antes, que os desfavorecidos apresentam ou vivem uma realidade com um determinado conjunto de características.
Assim, ‘realidade’ é um nome seguido de um modificador (grupo preposicional) que o restringe em termos de significado, mas que não está nele implicado em termos de estrutura argumental.
E depois da realidade (ainda por cima 'dos desfavorecidos'), prefiro, à moda de Cesário, enveredar pelo caminho da transfiguração do real... pelas sugestões e alternativas que esta possa trazer (desejavelmente menos desfavorecida).
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