Hoje começo a escrever em inglês (em ‘American English’), da
pergunta à resposta: Are these times a-changing?! The answer, my friend, is
blowing in the wind / The answer is blowing in the wind!”
Bob Dylan num concerto há quatro anos
(© KI PRICE / REUTERS)
Comoção geral. Assim parece pela frequência do tema de conversa: Bob Dylan é Nobel da Literatura.
Para o choque de uns, a satisfação de outros, sem deixar de
mencionar os que indiferentemente olham para o assunto como mais um, no meio de
tantos outros provavelmente mais críticos ou interessantes (porque mais
determinantes na vida de cada um).
Interessa-me particularmente a reação que vai sendo revelada
pelos que no campo literário (ora por serem conceituados escritores ora por estarem
relacionados com o ensino da literatura) se vão pronunciando sobre a questão.
Entre as argumentações produzidas (música, canções não são literatura;
os autores de canções não são poetas; chegou a banalização, a relativização ou menorização da
literatura face a outras artes; há tempos de mudança na produção literária ou de falta de critérios para o que é literatura), quase
todas esbarram em duas evidências: uma, a de que muitos poemas acabaram por ser
musicados, tornando-se o suporte textual de belíssimas letras de canção (com
autores tão diversos como Camões, Florbela Espanca ou Pessoa, para me ficar por
Portugal e apenas por alguns poetas mais canónicos); outra, a de que muitas
letras de canção refletem autênticas pérolas poéticas (pelos mecanismos de
construção sonora, sintática, semântica, estilística; pela densidade metafórica
associada aos motivos / temas [re]criados; pelos efeitos pragmáticos, cultural
e simbolicamente reconstruídos nos planos da intervenção, da formação, da
sugestão, da criação artística, do gosto, da emoção e da ficção, numa memória
tão ou mais afetivamente coletiva quanto as que são reproduzidas de cor [ou,
como dizem os ingleses, “by heart”]).
Pelo cérebro ou pelo coração, chega-se ao estético, por mais
variáveis que os tempos, as contingências históricas e os gostos sejam. Neste sentido,
muitas letras de canção revelam conteúdos, trabalho de linguagem e processos de
(re)construção poéticos, a ecoar outros textos / outras artes / outras
realizações linguísticas / outras dimensões culturais. Encarados como poetas ou
não, nomes como Carlos Tê, Sérgio Godinho, Chico Buarque, Vinícius de Moraes,
Djavan, Dorival Caymmi marcam muita da escrita musicada na língua portuguesa
“d’aquém e d’além mar”, numa qualidade reconhecida como literária.
Uma letra de canção pode constituir-se como um belo poema,
se for literalmente rica, (re)ativa na leitura que dela se faça. Escrita para
ser acompanhada da música, ela não fica, por norma, no papel. O poema até
poderá não sair dele; contudo, na sua leitura original, não anda longe da voz
que, mais ou menos silenciosa, é bem distinta da representada na leitura de uma
notícia de jornal ou da linha de uma comum prosa, em ritmo diferente do verso.
Isto para não falar de alguma prosa que, de tão poética, está por certo mais
próxima da entoação do canto.
Entre a poesia feita canção ou a canção redigida em jeito poético,
a história literária confirma essa interação que música e literatura sempre
tiveram desde as origens. A tradição oral dos bardos, a homérica ou, ainda, na história da literatura
portuguesa, as compilações dos cancioneiros são o exemplo dessa convergência,
registando cantigas (de amor, de amigo, de escárnio e de maldizer) que são
poemas produzidos para serem cantados no contexto de animação das cortes
medievais.
Por tudo isto, Bob Dylan ser o Nobel da Literatura deste ano
é um dado que não me choca nem polemizo, enquanto cantautor de relevo na
tradição cultural da música norte-americana, escritor de prosa poética e autor de
uma obra autobiográfica. É mais conhecido como músico; ainda assim, mais
influente na sua escrita do que muitos outros nomes agraciados com o mesmo
prémio.
Por mais marginais que possam ser perspetivadas no seio da obra literária, as letras de
canção não deixam de ser um género de escrita entre os muitos que a literatura
tem. No seu sentido mais elevado (‘stricto sensu’) ou no âmbito da
paraliteratura / literatura popular (também “folk”) / infraliteratura, há sentidos
estéticos de variação e variedade muito difusos, por certo; mesmo assim,
literatura (no seu ‘lato sensu’), próxima que seja dessa proveniência derivante
de ‘littera’ (letra) e da arte da escrita.
Vídeo e letra de "Blowin' in the Wind", de Bob Dylan
Parafraseando “Blowin' in the wind” (nessa metáfora dos anos sessenta do século XX, tão
marcada pelo registo de protesto e intervenção, na procura da justiça social por que se lutava nesses tempos de inconformismo), apetece
perguntar ‘How many roads must a man walk down / Before you can call him a ‘nobel’?”
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