quarta-feira, 13 de junho de 2012

Da(s) Pessoa(s) que Fernando foi...

    Em dia de Santo António - do lisboeta Fernando Martins de Bolhões (séc. XII-XIII) -, não vou fazer sermão (qual Padre António Vieira, com Sermão de Santo António); faço antes advertência, para ou por causa de um outro Fernando.

    A 13 de Junho nasceu Fernando Pessoa (no ano de 1888). O homem veio para a vida, aquela que o poeta viu como demasiado real, sensível, corpórea. Na materialidade que o confinava a uma existência "baça", procurou a luz na poesia.
     No ato criativo e do fingimento poético conclui que “fingir é conhecer-se”. Enquanto expressão de ficção, "fingir" é sinónimo de um exercício de intelectualização, de criação; mas só conjugado com o "simplesmente sinto / Com a imaginação" (in "Isto") pode ser porta para a dimensão do inteligível, do espiritual. É a oportunidade de libertar o 'eu poético' dos enleios da realidade. 
      A teoria poética pessoana, visível em "Autopsicografia", é aquela que finge ser dor "a dor que deveras sente"; a que sublinha o poder da representação como diferente da realidade vivida / sentida (“Continuamente me estranho”, Não sei quantas almas tenho"); a que toma a inconsciência como virtude, como passado que desembaraça o sujeito de um presente feito de tristeza, consciência e/ou dor de pensar. 
     Sem deixar de ser um (ortónimo), Pessoa procura descentrar-se e, através da fragmentação do eu, atingir a finalidade da Arte: criar o múltiplo, o indefinido, o vago, o abstrato, o ideal, a libertação ou a passagem para um infinito que a realidade (finita) não dá.

Passam as nuvens, murmura o vento
Passam as nuvens, vão devagar.
Demoro em mim o meu pensamento
E só encontro não encontrar…

Passam as nuvens, os ventos vão,
Levam as nuvens a um vago além
Mas nunca a dor em meu coração
Ou a ânsia vaga de que provém.

Passam as nuvens, não têm destino
Salvo passar, não ficar aqui…
Assim meu ser tivesse um divino
Nenhum-destino, não ser de si.

Passam as nuvens, eu fico e tenho
Por meu destino pior, ficar…
Sem saber donde, nuvem, provenho
Ou qual o vento que me há-de levar…

30 - 4 - 1917 

in Poesia 1902-1917, ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine
Editora Assírio & Alvim , 2005

    Fingimento e mentira são formas de expressão, de linguagem na arte pessoana, pelo que têm de declaração e de construção interessadas numa alternativa ao real presente.

    Neste contexto, espero que os meus alunos finjam e mintam muito, pelo que de virtude e criação pessoanas há. Que sejam o corpo de gavetas onde colocarão, organizadamente, o que precisam para a grande prova que se aproxima. Caso contrário, valha-lhes Santo António (que, antes de ser santo, foi homem, intelectual, religioso e, acima de tudo, pessoa com nome de Fernando). 


4 comentários:

  1. Professor,

    Reconheço que esta deu nó: "Fingir que é dor / a dor que deveras sente"?!!! Como é possível?

    HELP!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Por representação, claro está!
      Então imagina-te a ter de representar um papel: o encenador / diretor de cena pede para fingires que és uma mulher, quando já és uma mulher... (Fingir que és mulher / a mulher que deveras és).
      A arte é um exercício de representação.
      A linguagem é uma forma de representação do mundo, também.
      Além disso, "a dor que deveras sente" é um sinal do lado sensível, material, corpóreo que o sujeito poético não quer. Ele prefere o fingimento, o intelecto, a imaginação, a criação: "Sinto com a imaginação".
      Está o nó desenlaçado?

      Eliminar
  2. De facto quando escrevemos voamos para além daquilo que somos. Fernando Pessoa voava para além daquilo que era, como ele diz "escrever não era a sua profissão mas sim uma vocação". Se um dia esse nó tiver desenlaçado, podemos perceber quem era na realidade este homem que pretende ser fingidor. Eu quero sem dúvida continuar a descobrir as minhas facetas e continuar a escrever, não pretendo imitar ninguém nem ser como ninguém, pretendo apenas fazer aquilo que me compete, voar e tentar descodificar esse nó de que tanto fala. Tentar compreender se esta será realmente a minha vocação e não a minha profissão.

    ResponderEliminar
  3. Nunca tive a certeza quanto às razões do poeta para esta negação do corpóreo, do físico!
    Se, por um lado, elas se inscrevem na teoria platónica, que releva o sensível para segundo plano, porque os sentidos enganam (e aqui ficaríamos apenas pela necessidade de se encontrar uma paltaforma superior do conhecimento,a busca do que é verdade); ou se ele bem cedo tem consciência de que a sua alma não cabe no seu corpo, que o limita, espartilha, estando, por isso também, todas as suas sensações, os seus seus sentires, as suas emoções "enclausurados" nesse corpo, quando alma os perceciona de forma muito mais complexa? Por isso, ele diz, quando se assume Álvaro, que "transborda"...
    Não sei! Talvez sejam as duas verdade (ou nenhuma), mas eu gosto de pensar que a segunda hipótese tem mais peso nesse fingimento poético, nesta múltipla representação de todas as pessoas que há nele!
    Já agora uma provocação: aquela ação com "nuvens" também não será herdeira do nosso Paltão e, por isso, tu nela te inscreveste?
    Tem um bom dia, que eu cá continuo com o meu japonês, de quem, penso, o Pessoa gostaria!

    bjinho
    IA

    ResponderEliminar