É cíclico. Foi-se a primavera; vive-se o verão, que terá outono e inverno.
E há de passar o tempo quente, o da queda da folha, o do cortante frio...
E depois...
Quando tornar a vir a primavera
Talvez já não me encontre no mundo.
Gostava agora de poder julgar que a primavera é gente
Para poder supor que ela choraria,
Vendo que perdera o seu único amigo.
Mas a primavera nem sequer é uma coisa:
É uma maneira de dizer.
Nem mesmo as flores tornam, ou as folhas verdes.
Há novas flores, novas folhas verdes.
Há outros dias suaves.
Nada torna, nada se repete, porque tudo é real.
Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"
Caeiro, por Lívio de Morais (1998)
Versos do heterónimo pessoano que se entrega à natureza e se assume numa aparente (só aparente) espontaneidade: a da consciência de que passamos, vamos ao sabor do vento, na possibilidade de o ser não ter futuro. Procurando ver o tempo como ele é (na repetição de instantes), sublima-se o real - numa atitude panteísta (divinização da natureza) compaginada com a objectividade e a naturalidade próprias dos mais simples. Assim se cria uma filosofia e um pensamento próprios: os que, paradoxalmente, na ou pela negação se constroem.
O "guardador de rebanhos" toma-se pelo ser pousado sobre a terra, sobre a natureza intuitiva e sensorialmente apreendida. Na constante novidade e no (a)firmado propósito de viver o instante, constrói-se um pensamento (o do "poder supor"), uma expressão de sentimento ("gostava") e a dimensão de um futuro feito de hipótese, de condição e ficcionalidade ("Quando vier") com a virtualidade e a possibilidade criativas ("choraria"). Presente-se, ainda, a memória de um sentimento, instaurado no exercício criativo e imaginativo que o pensamento propicia ("Vendo que perdera o seu único amigo").
Depreende-se a pressuposição de uma certeza (futura e receada), perante a dúvida formulada num "agora": a da morte como um dado (mesmo que noutros poemas essa situação seja encarada como algo que o deixa inalterável, que não o "move").
Depreende-se a pressuposição de uma certeza (futura e receada), perante a dúvida formulada num "agora": a da morte como um dado (mesmo que noutros poemas essa situação seja encarada como algo que o deixa inalterável, que não o "move").
Na vivência cíclica do tempo-natureza, Caeiro desagua num pseudo-tempo, multiplicado numa sucessão de presentes (talvez um tempo-nada, que se quer sem a consciencialização de um antes ou um depois, para poder dar apenas lugar ao que é ser, existencial). No tudo que Caeiro nega, como princípio, o texto (re)compõe e (re)afirma, na prática.
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