sexta-feira, 22 de junho de 2012

Com a maior das doenças

   No Teatro Nacional de S. João há um hipocondríaco em cena, provocando a gargalhada necessária a alguma crise destes tempos.

   Para todos os que se sentam na posição de espectador, a gargalhada é frequente nesta comédia de Jean-Baptiste Poquelin, mais conhecido por Molière (séc. XVII). Num texto traduzido por Alexandra Moreira da Silva e numa encenação de Rogério de Carvalho, 'O Doente Imaginário' coloca o público perante a última produção dramática do escritor francês, numa representação em que o egocentrismo obsessivo e patético de Argão (Jorge Pinto) deixa ver na comédia o registo trágico do que é ter medo da morte, fazendo da medicina uma religião; da atenção e do cuidado, a tirania na sobrevivência.


   Há uma estatística risível em todo este raciocínio, evidenciando a doença de todos aqueles que querem reduzir a vida a um número, a um medicamento para evitar o mal pior, a uma estratégia preventiva para o inevitável.
    Só Tonieta (Emília Silvestre) com o seu "Pulmão!" parece trazer a reposição da ordem, mesmo quando esse "pulmão" se inspira nalguma desonestidade, numa máscara ou mentira com objetivos salutares, tentando oxigenar ou curar o patrão da sua fixação em doenças, boticários e médicos. Com a cumplicidade do irmão de Argão, a criada convence o amo a fingir-se de morto, para que se possa descobrir quem realmente gosta dele. Assim, prova-se que Belina, a segunda esposa de Argão, está apenas interessada no dinheiro do marido, enquanto a filha Angélica mostra que realmente o ama. Na "ressureição" do suposto morto, Angélica conquista a liberdade, para se casar com quem quer escolher (não um Diaforético, mas Beraldo).
   Entre Flatêncios, Diaforéticos e Purgários; remédios, deslocações à privada e lavagens, também este mundo se vê dominado por múltiplas doenças, nomeadamente as da repetição, do egoísmo, do utilitarismo, dos interesses próprios, dos pretensos e acumulados problemas que se transformam na pior das problemáticas (impossibilitadora das vivências de felicidade a que qualquer ser humano tem direito).


     São estas imagens de um ensaio que deu lugar a animada representação, com os ingredientes necessários a uma boa comédia: um texto com muita "inclinação", uma criada com grande "Pulmão!", um Beraldo espertalhão, mais um Diaforético, filho, que lembra como "Água mole em pedra dura tanto dá que lá tirou a licenciatura". Uma diversão.

    Uma comédia, um protesto da inteligência contra as maleitas do corpo e da alma - um texto em que o riso não deve fazer esquecer a racionalidade, a reflexão acerca dos limites da vida.

Sem comentários:

Enviar um comentário