Depois de dois a falar de gramática, interessa lembrar que, segundo expressão idiomática, não há dois sem três.
O desafio é lançado por uma aluna que, neste contexto de ensino à distância, aproveita a oportunidade para dialogar comigo por mail:
Q: Olá, professor. Boa noite. Estive a ajudar um amigo com uns exercícios de gramática sobre funções sintáticas e estamos ambos com dúvidas numa alínea. Nesta está escrito "Dói-me a cabeça" e é preciso indicar a função sintática de "me" e "a cabeça". Eu acho que "me" é sujeito e que "a cabeça" é complemento direto, mas o meu amigo diz o contrário. Pode fazer-me o obséquio de me dizer quem está certo? Boa noite, novamente, e obrigada por ler. :)
R: Olá. Creio que não vou dar razão a nenhum (ai, ai, ai...).
Nessa frase, 'a cabeça' é o sujeito sintático. Repara que eu poderia substituir esse grupo nominal pelo pronome 'ela' - 'Ela dói-me' > 'A cabeça dói-me'. É o melhor teste de identificação / comprovação.
Quanto ao 'me' trata-se de um pronome com a função, neste caso, de complemento indireto. A cabeça dói a alguém. "A quem?" - esta seria a pergunta para obter a resposta do elemento que funciona como complemento indireto. Mais: sei que é o complemento indireto porque, no caso da primeira pessoa, é usado o 'me'; no caso da segunda pessoa, seria o 'te' (> Dói-te a cabeça) e, no caso da terceira, seria o 'lhe' (> Dói-lhe a cabeça). Ora, o 'me' aparece na mesma distribuição de um 'lhe' que, na terceira pessoa, é a marca pronominal do complemento indireto. Portanto, 'me' exerce esta função equiparada ao 'lhe'; 'a cabeça' é o sujeito (invertido) da frase.
Lamento, mas nenhum dos dois está correto! Toca a fazer as pazes e façam o favor de ser felizes, com a gramática certa.
Espero ter ajudado no raciocínio.
Boa noite.
Não ficando por aqui, prosseguiu o diálogo assíncrono nestes termos:
Q: Obrigado pelo esclarecimento, professor.
Mas ainda tenho uma dúvida: "A cabeça" poderia ser complemento oblíquo? Penso que dizer apenas "Dói-me" não está correto, pois falta algo.
R: Não, não poderia. Tens razão quando pensas que falta algo. A verdade é que falta o sujeito sintático da frase, enquanto elemento normalmente presente numa oração. Alguma coisa dói; neste caso, a cabeça. Ela (o sujeito da frase, ainda que invertido, pois não se encontra no local típico de início de frase). É este teste de pronominalização que assegura estarmos perante o sujeito sintático.
O que te deve estar a confundir, a ponto de ainda pensares em complementos, é a posição do sujeito na frase: não é a mais comum (normalmente abre uma frase), mas não te esqueças que há sujeitos invertidos na sintaxe do português. Na verdade, o verbo 'doer' é tipicamente intransitivo. Daí não selecionar obrigatoriamente nenhum complemento. No caso da frase que estás a trabalhar, esse verbo, porém, apresenta uma realização transitiva indireta, ou seja, uma realização na qual se assume um complemento indireto: o 'me' (que aparece no mesmo local de um 'lhe', na terceira pessoa).
O que te deve estar a confundir, a ponto de ainda pensares em complementos, é a posição do sujeito na frase: não é a mais comum (normalmente abre uma frase), mas não te esqueças que há sujeitos invertidos na sintaxe do português. Na verdade, o verbo 'doer' é tipicamente intransitivo. Daí não selecionar obrigatoriamente nenhum complemento. No caso da frase que estás a trabalhar, esse verbo, porém, apresenta uma realização transitiva indireta, ou seja, uma realização na qual se assume um complemento indireto: o 'me' (que aparece no mesmo local de um 'lhe', na terceira pessoa).
Espero ter satisfeito e esclarecido a tua dúvida.
E fico-me por aqui, para não ter de explicar que o 'me', noutras frases e com outros verbos, assume também a função de complemento direto. Antes de dar nó, é melhor gerir a informação a transmitir. Não vá isto tornar-se no triângulo das Bermudas e ficar tudo em desgraçada confusão.
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