Admito que depois desta e de já ter respondido a "Quem é Lídia?", é possível esperar todas as perguntas sobre Pessoa e a sua heteronímia.
Assim me perguntava uma aluna há dias, algo apreensiva pelo facto de ainda não ter resposta para a sua dúvida.
Q: Professor, afinal Caeiro era ou não era pastor? Já nem sei que pense.
Imagem: adaptação de um pormenor do mural da Universidade de Lisboa
com o heterónimo pessoano Alberto Caeiro
com o heterónimo pessoano Alberto Caeiro
(caricatura de 1958, produzida por Almada Negreiros: 1893-1970)
R: Nem eu sei que diga, face ao que terá provocado tamanha dúvida. Entre o muito que se leia sobre o assunto (ora com reducionismos ora com ausência de leitura dos próprios versos do poeta), só posso responder que, ao jeito de Caeiro, este era o que escrevia num papel que estava no seu pensamento. No mundo fictivo e metafórico que a literatura cria, todas as possibilidades são válidas nos limites interpretativos (teorizados por Umberto Eco) que os textos / as obras dão a ler. Os versos de Caeiro mostram um ser em contacto com a Natureza, num panteísmo que pode estar na origem de tudo. Para lá disto, tudo é comparável. E porque ser como não é ser, não faz sentido a identificação; só a comparação.
Pastor... A sê-lo, não o foi em "O Guardador de Rebanhos", por aí ter afirmado que nunca guardou rebanhos (poema I). E se é como os guardasse, tal só é comparável pelo facto de os rebanhos serem as suas ideias, os seus pensamentos feitos de sensações. Desta forma, Caeiro dá-se a ler como pensador (é o mestre heteronímico), por mais que entenda que pensar "incomoda como andar à chuva" (poema I). Na verdade, a sua recusa, por princípio, do pensamento não é levada até ao fim, por continuamente estar no exercício deste, procurando concretizar o que se lhe revela demasiado abstrato. Nesta linha estão muitas das suas comparações.
Se foi pastor, só se considerou como tal em "O Pastor Amoroso" - a segunda parte de uma trilogia poética também composta por "O Guardador de Rebanhos" e "Poemas Inconjuntos". Nela e nos cerca de oito poemas datados de 1914 a 1930, o poeta de "O amor é uma companhia" (poema V) revela-se frequentemente pelo e no contrário do que deixa ler nas restantes duas. Nesse contrário, compõe a totalidade do que é: um místico feito de realidade (ou materialidade) apreendida graças às sensações; um simples ser na complexidade do que é; a liberdade singular de quem escreve prosa nos seus versos e que entende a poesia como a ciência das sensações. Porque "O pastor amoroso perdeu o cajado" (e nunca mais o encontrou), como o enuncia no poema VIII, resta-lhe ser a expressão da possibilidade de uma arte anunciada como moderna, numa representação livre, aberta à possibilidade significativa que nenhum outro modelo pode dar. Em síntese - um "eu" que não pode ser simples, porque é moderno; que só é aparentemente simples, por essencialmente revelar uma complexidade filosófica típica da profundidade dos mestres.
Assim, Caeiro é um pastor mas de pensamentos, de ideias; de um conjunto de sensações fundado numa sensibilidade intensa e atenta à eterna novidade do mundo - captada por sentidos complementares ao que a visão dominantemente lhe proporciona; reforçada por pensamentos, pois, para Caeiro, "Amar é pensar" (poema VI). Daí ser "Pastor Amoroso", com o metafórico entendimento dos "rebanhos".
Na composição deste heterónimo, apenas se antevê uma doxa mínima: a de que as coisas o são, porque reais e captadas pelos sentidos; a de que as coisas existem a cada momento, a cada instante que são percecionadas. À parte isto, Caeiro é como um pastor; a sua alma é como um pastor. É um "guardador de rebanhos", não sendo estes senão pensamentos (até porque eles são mais concretos do que estes). A todo o tempo, Caeiro é uma "qualquer cousa natural".
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