Depois de uma experiência fílmica dececionante, chegou o (inesperado) inverso.
Assumo que, à partida, não entrei na sala de cinema com grandes expectativas. A companhia era excelente, mas o filme não me dizia muito, a julgar pelo trailer e pelo que se anunciava em termos temáticos: a angustiante perda (na e da vida) e o peso estagnante da solidão superados pelo encontro de uma idosa de 73 anos com um jovem de 18, com tudo o que de mais insólito se previa na relação.
"Os Gatos Não Têm Vertigens", realizado por António-Pedro de Vasconcelos, aborda a força de uma amizade que salva vidas: a de um jovem com dificuldades, e desamparado na vida, mais a de uma triste viúva, que bruscamente perdeu a sua fonte de energia. Ambos enfrentam o dia-a-dia numa sociedade onde parece não haver tempo para nada e onde o dinheiro se tornou regra de ouro ou condição básica de sobrevivência. Uma nota de esperança surge quando, um pouco à semelhança de David Copperfield (de Charles Dickens), o espectador depara com um jovem que não se resigna e, depois de uma infância e adolescência difíceis, acaba por vencer na vida pela escrita, graças à ajuda recebida de um outro alguém que lhe deu de comer, o acolheu, o "leu", num encontro improvável e inesperado.
Com argumento de Tiago Santos, as personagens Jó (João Jesus) e Rosa (Maria do Céu Guerra) precisam apenas de um terraço para construir um universo de afetos, capaz de ultrapassar o desencanto do rapaz e a história triste de quem acabou de perder subitamente o companheiro (Joaquim, interpretado por Nicolau Breyner) de uma vida, de uma existência pautada de lutas e resistências várias. Nas diferenças de cada personagem, há uma base comum: a clandestinidade do amor, que vai ser conjuntamente descoberta e cimentada pelos comportamentos, pelas confidências, pelos compromissos, pela linguagem e pela cumplicidade cómica (tantas vezes reproduzida num "És tão disparatado!"). Dela, também, Ana Moura dará conta, musicalmente, enquanto voz do tema principal da banda sonora:
(interpretado por Ana Moura e escrito por António-Pedro de Vasconcelos)
CLANDESTINOS DO AMOR
Vivemos sempre sem pedir licença
cantávamos cantigas proibidas
Vencemos os apelos da descrença
que não deixaram mágoas nem feridas
Clandestinos do Amor, sábios e loucos
vivemos de promessas ao luar
Das noites que souberam sempre a pouco
sem saber o que havia para jantar
Mas enquanto olhares para mim eu sou eterna
estou viva enquanto ouvir a tua voz
Contigo não há frio nem inverno
e a música que ouvimos vem de nós
Vivemos sem saber o que era o perigo
de beijos e de cravos encarnados
Do calor do vinho e dos amigos
daquilo que para os outros é pecado
Tu sabias que eu vinha ter contigo
pegaste-me na mão para dançar
Como se acordasse um sonho antigo
nem a morte nos pode separar
Nós somos um instante no infinito
fragmento à deriva no Universo
O que somos não é para ser dito
o que sente não cabe num só verso
Enquanto olhares para mim eu sou eterna
estou viva enquanto ouvir a tua voz
Contigo não há frio nem inverno
e a música que ouvimos vem de nós
Vencemos os apelos da descrença
que não deixaram mágoas nem feridas
Clandestinos do Amor, sábios e loucos
vivemos de promessas ao luar
Das noites que souberam sempre a pouco
sem saber o que havia para jantar
Mas enquanto olhares para mim eu sou eterna
estou viva enquanto ouvir a tua voz
Contigo não há frio nem inverno
e a música que ouvimos vem de nós
Vivemos sem saber o que era o perigo
de beijos e de cravos encarnados
Do calor do vinho e dos amigos
daquilo que para os outros é pecado
Tu sabias que eu vinha ter contigo
pegaste-me na mão para dançar
Como se acordasse um sonho antigo
nem a morte nos pode separar
Nós somos um instante no infinito
fragmento à deriva no Universo
O que somos não é para ser dito
o que sente não cabe num só verso
Enquanto olhares para mim eu sou eterna
estou viva enquanto ouvir a tua voz
Contigo não há frio nem inverno
e a música que ouvimos vem de nós
Trata-se de uma bela película, a dar conta do desprendimento que uma idosa divertida (no espírito e na vida vivida) pode assumir, para se revelar e se sentir útil junto de um jovem marginalizado. Curiosamente, num filme com interpretações de grandes atores (Maria do Céu Guerra, Nicolau Breyner, Fernanda Serrano, Ricardo Carriço), há a revelação de um jovem ator (João Jesus) que se impõe entre os veteranos com a qualidade da continuidade. Todos jogam para uma história em que os jovens (gatos) arriscam, desafiam, "não têm vertigens"; também alguns idosos não as sentem, ora porque dão de comer "aos gatos" (no terraço) ora porque também procuram ter tempo, ter projetos, ser úteis ao mundo - depois do tanto por que lutaram e viveram.
No cómico de situações e de linguagens apresentado, o espectador sai do filme com o bem-estar e a sensação de que o mundo pode ser melhor, porque feito de humanidade, de afetos e de possibilidades decorrentes de encontros felizes.
Porque os bons são premiados e os maus da fita denunciados; porque pode haver justiça (nem que seja apenas na ficção); porque pode haver felicidade independentemente da idade e dos caminhos que nos fazem cruzar com tristezas e/ou com aparentes alegrias..., há filmes que, na seriedade do enredo, não perdem a leveza que nos faz sentir bem. Este é um deles.
Pois, de facto, Vítor, o teu título faz justiça ao filme!
ResponderEliminarE subscrevo tudinho o que aqui está, a começar pela sensação de espanto, pela surpresa que a película foi para mim. Não estava à espera de... coisa tão bem feita!
Refiro ainda que aqui o amor tem várias cores, porque todos os seus cambiantes aqui moram: o amor de Rosa e de Joaquim, o (des)amor de Jó e dos seus progenitores (será melhor este o termo), o amor da filha que se preocupa com a mãe, mesmo que Rosa seja, nas suas próprias palavras "um emprego de que não gostas!", o amor ao dinheiro (sim, este também!)... tantos amores... Enfim, comovi-me, ri e vivi, por momentos, a vida das personagens!
Quero destacar aqui uma passagem tua, Vítor, porque um dos aspetos de que mais gostei neste filme foi o ênfase dado ao poder da leitura e da escrita. Afinal, dizia o falecido Joaquim "As respostas estão todas por escrito!" - "uma nota de esperança surge quando, um pouco à semelhança de David Copperfield (de Charles Dickens), o espectador depara com um jovem que não se resigna e, depois de uma infância e adolescência difíceis, acaba por vencer na vida pela escrita,".
E tenho dito!
Pequeno parêntesis:
(Bem, poderia também destacar aqui o amor ao vermelho! Desamor talvez para alguns críticos! ;-) O filme quer-se simples e não pretende ser filme de arte; quer-se social e não apenas centrado em cânones estéticos... Mas quem sou eu!?).
Beijinho e boa semana de trabalho!
IA
Obrigado, Isaura.
EliminarEsta foi uma boa vivência na fila J.
Beijinho e boa semana de trabalho.