Com palavras tão elogiosas, como é possível não dar andamento à "Carruagem"?
De regresso aos "que", com muito que se lhes diga.
Q: Boa tarde, Vítor.
Em primeiro lugar, começo por lhe pedir desculpa por, mais uma vez, o incomodar, mas a página Carruagem 23 é, de facto, um dos locais que prefiro para tirar dúvidas e aprender.
E as dúvidas de hoje são as seguintes:
Gostaria que me confirmasse qual a classe de palavras a que pertence o "que" nas seguintes frases: "Se no tempo de Fernando Pessoa houvesse Facebook, então é que a arca nunca mais acabava." e "O especialista, se quiser, que continue a buscar as suas interpretações". Pronome relativo nas duas? Na segunda frase, parece-me, mas na primeira estou com muitas dúvidas.
Já agora, e ainda em relação à última frase, como dividir e classificar as orações? Penso que "se quiser" é subordinada adverbial condicional e podemos considerar "O especialista que continue a buscar as suas interpretações" subordinante.
Devemos ainda dividi-la em "O especialista que continue" subordinante e "a buscar as suas interpretações" substantiva completiva? " dado que a podemos substituir por "O especialista que continue isso".
Grata pela atenção, assim como pelo verdadeiro serviço público prestado à língua portuguesa.
R: Boa tarde, colega.
Primeiro de tudo, muito obrigado pelas suas palavras e pela confiança. Fico muito satisfeito por saber que esta "carruagem" tem público no seu andamento e que, pelos vistos, aprecia as "viagens" realizadas.
Quanto à classificação dos 'que' indicados, registo o seguinte:
i) "Se no tempo de Fernando Pessoa houvesse Facebook, então é que a arca nunca mais acabava"
Partícula de foco / operador de construção clivada
ii) "O especialista, se quiser, que continue a buscar as suas interpretações"
Conjunção completiva
Em ii), a colocação dos elementos da frase na que seria a ordem canónica ( > que o especialista continue a buscar as suas interpretações, se quiser) permite verificar a presença de uma oração ('que o especialista continue a buscar as suas interpretações') com uma forma verbal no conjuntivo (continue), com valor seja diretivo seja optativo. Por sua vez, esta oração tem por base uma outra pressuposta / subentendida. Assim, é de admitir uma construção plena do tipo '[Peço / Permito / Espero / Desejo / Pretendo / Tenciono / Quero] que o especialista continue a buscar as suas interpretações'; daí o entendimento do 'que' enquanto conjunção subordinativa completiva ou integrante, introdutora de um argumento interno (complemento direto) ao núcleo verbal sugerido no sublinhado.
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Em i), 'que' integra uma expressão('é que') responsável pelo realce / destaque atribuído à oração consequente a uma condição inicialmente criada. A construção 'é que' (enquanto unidade) proporciona uma funcionalidade discursiva própria, tomando-se o 'que' como um operador do que os estudos linguísticos designam estruturas ou construções clivadas. Atendendo ao exemplo em concreto, 'é que' funciona como apresentador de uma oração (segunda), enfatizando o seu conteúdo na sequência da condição (contrafactual) pressuposta e na base de um raciocínio também pressuposto ( < [a coleção de documentos d]a arca nunca mais acaba). Em suma, a classificação deste 'que' situa-se mais no plano de análise discursivo-textual, da gramática de texto, do que no da tradicional gramática da frase. Tem, portanto, um sentido pragmático mais relacionado com atos de fala, nomeadamente o de uma reação ao que pudesse ser um ato anterior (implicado) como 'Esta arca nunca mais acaba!'
Quanto à questão da divisão e classificação oracional do segundo exemplo, "se quiser" constitui uma subordinada adverbial condicional de uma frase matriz configurada por um núcleo verbal principal elidido (um dos acima propostos, no esquema, à esquerda). A este último sucede um complemento direto ('que o especialista continue a buscar as suas interpretações'); por sua vez, e a um outro nível de análise, na subordinada completiva terá de considerar-se (internamente) a existência de um sujeito subordinado (o especialista) para um predicado subordinado ('continue a buscar as suas interpretações') com um verbo ('continue') e uma oração não finita infinitiva a funcionar como complemento direto ('a buscar as suas interpretações').
Na complexidade dos 'que' propostos e da análise oracional solicitada, fica o registo de que nem tudo o que parece é e, no que toca aos exemplos considerados, o ser tem razões muito além das frases que se podem ler.
Muito obrigada, Vítor, pelos esclarecimentos, tão completos e detalhados. Realmente, eu estava um pouco "baralhada".
ResponderEliminarContinuo a dizer que quando apanho esta carruagem, aprendo sempre.
Continuação do bom trabalho e um bem-haja!
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
ResponderEliminarMuito obrigado, também, Francisca.
ResponderEliminarQue estas "viagens" sejam tão proveitosas quanto a vontade de resolvermos, em conjunto, as dificuldades que nos baralham (porque nem tudo é simples na nossa língua, sempre a colocar-nos perante situações desafiantes).
Com os votos de bom trabalho, coloco-me ao dispor para futuros "desafios" do Português.
Renovado agradecimento pela atenção e pela confiança depositadas.