quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

No dia seguinte...

      Depois do momento ontem vivido na conferência-concerto multimédia "O Violino de Auschwitz", folheei O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984).

    Perante um tempo com o qual não se identifica ideologicamente, o narrador do romance saramaguiano relembra a estátua de Camões e como esta não tem um, mas os dois "olhos cegos", fechados perante uma realidade histórica que não merece contemplação - nem a portuguesa nem a europeia:

       Se estas são mágoas de uma pessoa, a Portugal, como um todo, não faltam alegrias. Agora se festejaram duas datas, a primeira que foi do aparecimento do professor António de Oliveira Salazar na vida pública, há oito anos, parece que ainda foi ontem, como o tempo passa, para salvar o seu e o nosso país do abismo, para o restaurar, para lhe impor uma nova doutrina, fé, entusiasmo e confiança no futuro, são palavras do periódico, e a outra data que também diz respeito ao mesmo senhor professor, sucesso de mais íntima alegria, sua e nossa, que foi ter completado, logo no dia a seguir, quarenta e sete anos de idade, nasceu no ano em que Hitler veio ao mundo e com pouca diferença de dias, vejam lá o que são coincidências, dois importantes homens públicos. E vamos ter a Festa Nacional do Trabalho, com um desfile de milhares de trabalhadores em Barcelos, todos de braço estendido, à romana, ficou-lhes o gesto dos tempos em que Braga se chamava Bracara Augusta, e um cento de carros ornamentados mostrando cenas da labuta campestre, ele as vindimas, ele a pisa, ele a sacha, ele a escamisada, ele a debulha, e a olaria a fazer galos e apitos, a bordadeira com os bilros, o pescador com a rede e o remo, o moleiro com o burro e o saco da farinha, a fiandeira com o fuso e a roca, com esta faz dez carros e ainda hão-de portugueses, um deles, ainda assim, ilustrou a notícia com uma fotografia da praça, onde se viam, espalhados, alguns corpos, e uma carroça que ali parecia incongruente, não se chegava a saber se era carroça de levar ou de trazer, se nela tinham sido transportados os touros ou os minotauros. O resto soube-o Ricardo Reis por Lídia, que o soubera pelo irmão, que o soubera não se sabe por quem, talvez um recado que veio do futuro, quando enfim todas as coisas puderem saber-se. Lídia já não chora, diz, Foram mortos dois mil, e tem os olhos secos, mas os lábios tremem-lhe, as maçãs do rosto são labaredas. (...)
      Os dias seguintes são pródigos em notícias, como se o comício do Campo Pequeno tivesse feito redobrar o movimento do mundo, em geral damos o nome de acontecimentos históricos a estes episódios. Um grupo de financeiros norte-americanos comunicou ao general Franco estar pronto a conceder os fundos necessários à revolução nacionalista espanhola, isto há-de ter sido ideia e influência de John D. Rockefeller, nem tudo seria conveniente esconder-lhe, deu o New York Times a informação do levantamento militar em Espanha com todas as cautelas para não ferir o coração debilitado da ancião, mas há coisas que não podem ser evitadas, sob pena de males maiores. Para os lados da Floresta Negra, os bispos alemães anunciaram que a igreja católica e o Reich iriam combater ombro com ombro contra o inimigo comum, e Mussolini, para não ficar atrás de tão belicosas demonstrações, deu aviso ao mundo de que poderá mobilizar em pouco tempo oito milhões de homens, muitos deles ainda quentes da vitória sobre esse outro inimigo da civilização ocidental, a Etiópia. Mas, regressando ao ninho nosso paterno, já não é só sucederem-se as listas de voluntários para a Mocidade, contam-se também por milhares os inscritos na Legião Portuguesa, que este nome terá, e o subsecretário das Corporações lavrou um despacho em que louva, nos termos mais expressivos, as direcções dos sindicatos nacionais pela patriótica iniciativa do comício, crisol onde se acadinharam os corações nacionalistas, agora nada poderá travar o passo do Estado Novo.
(segmento XIV do romance)

      Na ironia de que se compõe o discurso narrativo, há todo um contexto que se revê no ano da morte do heterónimo pessoano (1936), enquanto pano de fundo para o "ovo da serpente", gerador de uma política agressiva, de um autoritarismo que se difunde no continente europeu, lançado numa espécie de labririnto ou teia composta pela guerra civil espanhola, pela ocupação de territórios pela Alemanha nazi, pelo fim da guerra da Itália contra a Etiópia e pela constituição de milícias fascistas em Portugal (com Salazar e a Legião Portuguesa).

       Ecos de um tempo em que, ao contrário do que Ricardo Reis afirma numa das suas odes, "Sábio [não] é o que se contenta com o espetáculo do mundo!"

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