domingo, 3 de fevereiro de 2013

Ir a dobrar

      Haveria de chegar o dia em que a resposta não poderia ser preto ou branco. É que na língua (como na vida) há cinzentos e de várias tonalidades.

       Foi este o balanço da reflexão que a questão seguinte suscitou:

     Q: Olá, Vítor, tudo bem? Desculpa estar a incomodar com questões destas, mas tenho a certeza que me explicarás claramente o que pretendo saber. É correto dizer-se "vai vir" ou "vou ir"? Eu diria que sim, porque me parece o 'future proche' francês e há outras formas que utilizamos como: "vou fazer", "vou dizer", etc. Mas, sinceramente, soa mal quando se ouve as primeiras. Se puderes esclarecer, agradeço.

       R: Não sei se vou dar a resposta clara, tão pretendida, mas a questão formulada não é pacífica entre quem estuda a língua nem entre quem a usa.
          É certo o entendimento de que a construção ‘IR [verbo auxiliar] + IR / VIR [verbo principal]’ se aproxima do ‘future proche’ francês (que, no caso do português, dá conta de uma orientação para uma situação futura próxima e intencional, também admissível no espanhol com ‘voy a ir’, por exemplo).
        É ainda certa a apreciação do “soar mal”, critério suficiente para, na maior parte das situações, o utilizador ou falante evitar tais construções, recorrendo a estratégias alternativas : em vez de ‘vai vir’, utiliza-se o futuro ‘virá’ ou o presente ‘vem’ (este último também com valor de futuro – como quando se diz ‘amanhã eu faço isso’); no lugar de ‘vai ir’, prefere-se ‘irá’ ou ‘vai’.
           A verdade é que na variedade padrão do português europeu, entendida como norma culta, não é muito frequente dizer-se ‘ele vai ir’, o mesmo já não sucedendo no português do Brasil ou mesmo no que é falado nos Açores (ambos apresentando algumas realizações deste tipo, nomeadamente em discursos orais, mais ou menos informais).
           Se há uma regra gramatical que assuma claramente a proibição, a gramática tradicional não a dá. Alguns entendidos dizem que ‘vou ir’ é redundante; que é um pleonasmo (do estilo ‘entrar para dentro’, ‘subir para cima’ ou o já mais que falado 'há tempos atrás'). Discordo desta argumentação: por um lado, porque ‘ir+ir’ só aparentemente apresenta um mesmo verbo (o primeiro é um verbo auxiliar de temporalidade, enquanto o segundo é um verbo principal da área semântica do movimento); por outro, a pretendida redundância também estaria presente em “eu vou indo” e, aqui, o enunciado é perfeitamente aceitável em termos de referência a condições seja de saúde (Como vais? > Vou indo) seja de deslocação (Já é tarde. Vou indo a pé para casa).
        Assim, mais do que uma regra gramatical (de carácter normativo, prescritivo), é a aceitação ou não segundo o fator do uso (encarado mais na perspetiva das variedades, da funcionalidade comunicativa e da adequação dos modos e registos) que estará para o reconhecimento ou não de algumas realizações. Em termos de norma padrão do português europeu, ‘eu vou ir’ ou ‘ele vai ir’ não são ocorrências tomadas como de uso comum ou atestadas como de uso corrente. 

        Mais uma razão para se entender o conceito de gramática numa dimensão mais ampla, capaz de considerar a língua numa abertura ao uso e ao que ela tem de potencial (inclusive naquilo que lhe dá cor).

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