sábado, 22 de agosto de 2015

Entre o 'dejá vu' e o vale a pena

    Este é o balanço final do "A família Bélier", filme dirigido por Éric Lartigau.

    Há uma história tão comum, banal até, que não propõe atrativo nenhum para levar alguém a ver o filme: uma jovem camponesa é incentivada, pelo professor de canto, a apostar no talento e dom que, de repente, revela; a saída de casa e a ida para a capital tornam-se um problema, nomeadamente pelo que significa sair do "ninho" familiar e da vida local.
  Há um parzinho amoroso, umas relações de adolescentes em contexto escolar (e não só), um professor entre o desiludido e o (pouco) inspirado ou empático, uns políticos que fazem lembrar os que vemos praticamente todos os dias na televisão (sem se saber muito bem porquê) e uma família com as preocupações do quotidiano, seja no trabalho seja na vida comunitária.
    Há um ou outro toque de comédia a permitir alguns sorrisos.
    Há alguma música interessante, até pelo espírito revivalista da música francesa e de compositores / cantores das décadas de 60/70 do século XX, como é o caso de Michel Sardou. Ao longo da película, surgem as composições ("La maladie d'amour", "Je vais t'aimer", "En chantant"). Há quem não as reconheça; outros, como eu, sim e acompanham-nas na surdina, de boca fechada e com as ligeiras vibrações na garganta, como se participassem nos ensaios e nos espetáculos dados a ouvir na película. Uma se destaca, naturalmente, por ser a que a protagonista (Louane Emera, no papel de Paula Bélier) canta - "Je Vole" (da década de 80).

 "Je vole" (de Michel Sardou), interpretada por Louane Emera

Mes chers parents, je pars
je vous aime mais je pars
vous n'aurez plus d'enfant
ce soir

je n'm'enfuis pas, je vole
comprenez bien: Je vole
sans fumée, sans alcool
je vole. Je vole

elle m'observait hier
soucieuse troublée, ma mère
comme si elle sentait, en fait elle se doutait
entendait

j'ai dit que j'étais bien, tout à fait l'air serien
elle a fait comme de rien, et mon père dèmuni
a souri
ne pas se retourner, s'éloigner un peu plus
il y a la gare, un autre gare et enfim, l'atlantique

je me demande sur ma route
si mes parents se doutent
que mes larmes ont coulé
mes promesses et l'envie
d'avancer

seulement croire en ma vie
tout ce qui m'est promis
pourquoi, où et comment
dans ce train que s'éloigne
chaque instant

c'est bizarre, cette cage
qui me bloque la poitrine
je ne peux plus respirer
ça m'empêche de chanter

    Acima de tudo, há uma língua que ganha pelo poder comunicacional que tem - a língua gestual de uma família (pai, mãe, filho) que "fala" na condição de surdez a que está forçosamente votada. Só Paula Bélier (a filha) nasce a ouvir, ainda que tenha sido educada para que vivesse na condição dos progenitores - quase numa espécie de preconceito ao contrário. Ela é a intérprete dos pais e do irmão para o universo verbal.
    No jogo de interação e comunicação vividos, no seio da família e dos que com ela convivem, é interessante ver como as diferentes personagens reagem antes de saber da condição dos Bélier. Quase se pode perguntar quem sofre mais por não se fazer entender. 

Trailer do filme de Éric Lartigau

     Por fim, há três momentos fundamentais do filme: quando os pais e o irmão de Paula a vão ver ao espetáculo da escola, impondo-se o silêncio que os Bélier vivem e deixando os espectadores apenas ver os gestos, os movimentos, as reações das personagens como as únicas linguagens do mundo; quando o pai se aproxima ao mundo da filha, pedindo-lhe que cante e, ele, vai sentindo as vibrações da melodia (que não ouve, mas sente, a ponto de reconhecer o dom da filha e de a apoiar no sonho a seguir); quando a jovem canta para o júri do concurso de canto e traduz, em língua gestual, a letra para os familiares. "Je vole" é simultaneamente o voo da protagonista e uma declaração de amor aos pais.

      Vale a pena ver o filme nesta última perspetiva - numa relação entre língua e afetos; nas limitações físicas que a comunicação parece não ter ou procura efetivamente ultrapassar, quando se faz na base e na partilha das emoções. Uma possível defesa ou contribuição para uma língua emocional ou para a importância da emoção da/na língua.

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