quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Gaivotas em terra

      Ei-las todas alinhadas ao sabor do vento (que não muda nem para).

    Assim as encontrei, ao sair de casa, plantadas na relva que ladeia o "mamarracho" cá do sítio.

Gaivotas em terra... de Espinho (Foto VO)

     Lá diz o povo: "Gaivotas em terra, tempestade no mar". Sim, este anda muito agitado, altivo, tal como o mundo. Até as aves marinhas procuram repouso à espera de melhores dias. Acrescente-se, contudo, que as expressões idiomáticas e os provérbios são frequentemente redutores e culturalmente relativos. Isto é evidente quando na terra a acalmia é só para alguns e a agitação também não é para todos.
    Não é ocasião para lembrar que "uma gaivota voava, voava" (lá chegará!). É momento para deixar a tempestade amainar. Há tempos assim. Deixá-los passar. Hão de mudar.
     Gostava de ser uma destas gaivotas, em sossego. Ter tempo para reler Gaivotas em Terra, obra que David Mourão-Ferreira produziu na estreia da sua ficção narrativa (1959) e com a qual foi galardoado com o Prémio Ricardo Malheiros, da Academia das Ciências de Lisboa. Há nela uma novela intitulada "E aos costumes disse nada" (adaptada, em 1982, ao cinema como "Sem Sombra de Pecado", por José Fonseca e Costa), com um toque de escrita a lembrar prosa queirosiana, um retrato de época e de um país com muitas "tempestades":

       "E os tempos iam maus: quase toda a Europa estava em guerra, quase todo o mundo estava em guerra. Dos meus camaradas do COM, a maior parte tinha sido destacada para os Açores: alguns outros para lôbregas unidades fronteiriças. Eu - talvez graças a influências do meu pai - fora dos raros privilegiados a ficar numa guarnição de Lisboa." 
in "E aos costumes disse nada", de Gaivotas em Terra, Presença, [1959] 1998

     Neste segmento narrativo convergem várias metáforas: as da família, do quartel, da cidade, da guerra (e da sua linguagem), da terra a conviver com o grotesco, com a máscara, com uma formalidade aparente; a contrastar com a antítese e a duplicidade de comportamentos. Transparece uma sociedade que pouco tem de liberdade, na teia do "ser" e do "parecer", à espera de uma outra "tempestade", mais libertadora e geradora de condições de vida mais dignas.
     Pensamentos e reflexões feitos de uma atualidade que cansa (porque há quem teime em não aprender ou se renda ao que não é dever nem poder).
       
      Não sei se estas são as gaivotas que voam, que aspiram ao alto, à mudança; parece-me que não trazem "o céu de Lisboa". Andam mais perto, ameaçadoras. Talvez em qualquer lugar, a qualquer instante, espalhando excrementos corrosivos que importa limpar de imediato (como a "cegueira", as invejas e outros males do mundo). Com Zeca Afonso, o digo: "não há só gaivotas em terra quando um Homem se põe a pensar".

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