domingo, 4 de agosto de 2013

Arrumações com poesia

      Na arrumação de papéis que se acumularam ao longo do ano letivo, cruzei-me com um poema.

     Ora pelo resultado do pó depositado ora pela sugestão do tema evocado, os versos que partilho libertam-se do lixo (a que foi votado o papel, que, por alguma razão de muita importância outrora, mas hoje tão relativizada, foi guardado até ao dia de hoje).

      A COMICHÃO DO POEMA

Assentado me estou
numa estrutura
de pura literatura.
Minha avó me aconselha:
escrever sem que torça a orelha
comer sem que estoire a barriguinha;
melhor é tentear do que fazer poemas de cernelha
pegados à moda antiga.
Melhor de facto avó do que sonetos
pegados com saliva
são estes tersos versos de formiga:

   uma palavra preta
   com cem patas
   apoquenta o poeta
   que a procura de gatas.

   Pica-lhe o traseiro
   entra-lhe nas unhas
   faz-lhe o mal primeiro
   do que a caramunha.

   A palavra insecto
   corre-lhe nas pernas
   ameaça o reto
   e as partes internas.

   O poeta cata
   fala mais barato
   chamando-lhe ingrata
   descalça um sapato
   e ei-lo que mata
   o poema-chato.

                                       José Carlos Ary dos Santos
                                       in insofrimento in sofrimento, 1969

     Porque há poemas que causam tal sensação - por mais conceituados que os poetas sejam -, vou para a banheira libertar-me do sujo e do escuro do pó e, quem sabe, de algumas palavras pretas, que me possam lembrar ou levar a alguma chatice (essa condição tão abjeta quanto a do inseto sugador e parasita que a provoca), para não dizer a algum aborrecimento.

    A poesia também tem destas coisas tão banais quanto os efeitos do sentir e do(s) sentido(s).

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