Na arrumação de papéis que se acumularam ao longo do ano letivo, cruzei-me com um poema.
Ora pelo resultado do pó depositado ora pela sugestão do tema evocado, os versos que partilho libertam-se do lixo (a que foi votado o papel, que, por alguma razão de muita importância outrora, mas hoje tão relativizada, foi guardado até ao dia de hoje).
A COMICHÃO DO POEMA
Assentado me estou
numa estrutura
de pura literatura.
Minha avó me aconselha:
escrever sem que torça a orelha
comer sem que estoire a barriguinha;
melhor é tentear do que fazer poemas de cernelha
pegados à moda antiga.
Melhor de facto avó do que sonetos
pegados com saliva
são estes tersos versos de formiga:
uma palavra preta
com cem patas
apoquenta o poeta
que a procura de gatas.
Pica-lhe o traseiro
entra-lhe nas unhas
faz-lhe o mal primeiro
do que a caramunha.
A palavra insecto
corre-lhe nas pernas
ameaça o reto
e as partes internas.
O poeta cata
fala mais barato
chamando-lhe ingrata
descalça um sapato
e ei-lo que mata
o poema-chato.
José Carlos Ary dos Santos
in insofrimento in sofrimento, 1969
Porque há poemas que causam tal sensação - por mais conceituados que os poetas sejam -, vou para a banheira libertar-me do sujo e do escuro do pó e, quem sabe, de algumas palavras pretas, que me possam lembrar ou levar a alguma chatice (essa condição tão abjeta quanto a do inseto sugador e parasita que a provoca), para não dizer a algum aborrecimento.
A poesia também tem destas coisas tão banais quanto os efeitos do sentir e do(s) sentido(s).
Sem comentários:
Enviar um comentário