sábado, 3 de maio de 2014

(Para) onde nos levam algumas perguntas...

     O mínimo que se pode dizer é que há quem procure tornar monolítico o que não é tão único ou basilar.

        Tudo começa por a língua estar em ação concreta, contextualizada e resultar de uma intencionalidade e funcionalidade marcadas por necessidades específicas de comunicação e valores de natureza pragmática. E daí haver quem veja mais do que a mera classificação (de outro alguém) propõe.

          Q: Boa tarde, Vítor.
        Isto está a tornar-se um hábito, quero dizer, o facto de estar a incomodá-lo com questões e dúvidas, como se tivesse obrigação de me esclarecer. Espero que possa desculpar-me pelo atrevimento, que só posso justificar pela confiança que me merecem as suas explicações. Desta vez, precisava de saber como se classifica o ato ilocutório concretizado no enunciado "Estão admirados?", cujo enquadramento textual passo a transcrever: 
     
    «O jornalismo, aterrorizado com a ideia de que a cultura é pesada e de que o mundo tem de ser leve, nivelou a inteligência e a memória pelo mais baixo denominador comum, na esteira das televisões generalistas. Nasceu o avatar da cultura de massas que dá pelo nome de light culture em oposição à destrinça entre high e low. O artista trabalha para o «mercado», tal como o jornalista, sujeito ao rating das audiências e dos comentários online.
      A brigada iletrada, como lhe chama Martin Amis, venceu.
      Estão admirados? John Carlin, o sul-africano autor do livro que foi adaptado ao cinema por Clint Eastwood, «Invictus», conta que Nelson Mandela e os homens do ANC, na prisão, discutiam acaloradamente, apaixonadamente, Shakespeare. Foram «Júlio César» ou «Macbeth», «Hamlet» ou «Ricardo III» que os acompanharam. Não é um preciosismo. A literatura, o poder das palavras para descrever e incluir o mundo num sistema coerente de pensamento, é, como a filosofia e a história, tão importante como a física ou a álgebra.»


    A solução apresentada na chave de correção da prova onde surge esta questão é a de "ato ilocutório diretivo", suponho que por se tratar de uma frase interrogativa, mas será possível perceber neste enunciado a intenção de levar o interlocutor a determinada ação? A mim, parece-me mais correta a sua integração nos atos expressivos, podendo reforçar a própria admiração do locutor face ao assunto de que fala, mas também não tenho a certeza.
     Pedindo-lhe desculpa pelo trabalho que lhe estou a dar e pelo abuso, agradeço-lhe a ajuda que puder dar-me.
      Com os melhores cumprimentos.


      R: As primeiras palavras impõem-se para agradecer a confiança e o interesse que tem demonstrado por este espaço de partilha. E, como tal, nunca será abuso procurar respostas para dúvidas que, não sendo exclusivas, poderão ter respostas menos individuais, mais consensuais e sustentadas linguisticamente.
    Percebo perfeitamente a  dúvida colocada, considerando o contexto de produção adiantado para a interrogação "Estão admirados?" e o confronto com a situação de teste / avaliação descrita, mais o texto em que esta se baseia.
       Basta a leitura do excerto transcrito para se verificar que a interrogação em foco é de carácter retórico, o que já por si coloca de parte a chave de correção (cenário de resposta) proposta para a prova de avaliação a que alude. Quem a propôs apoiou-se simplesmente na estrutura formal do enunciado, esquecendo-se que nem sempre há correspondência entre a classificação ou produção de um ato de fala e o recurso a estruturas formais específicas ou exclusivas (no caso em análise, ver um ato diretivo sempre que surja um enunciado interrogativo). Na verdade, não pode ser seguido este raciocínio, pois frequentemente empregam-se estruturas típicas de certos atos de fala para ativar um outro ato bem distinto (ex.: dizer "Está frio aqui" vai muito além da natureza assertiva, quando, num espaço fechado e que se pretende protegido, se associa a um ato diretivo, esperando-se, então, que alguém feche a porta ou a janela que possa estar a provocar o frio sentido). São os chamados atos ilocutórios indiretos, decorrentes de um valor pragmático, com uma força ilocutória distinta do que o formato inicial dos enunciados propõe.
    Segundo a linguista Catherine Kerbrat-Orecchioni, na obra La question (1991: 25), as perguntas retóricas figuram entre atos ilocutórios indiretos: o locutor não interroga senão retórica ou ficticiamente, sem esperar uma informação sobre algo que desconhece. No limite, a questão é expressão de uma reação ou de uma pressuposição do locutor, que poderá eventualmente admitir ao alocutário (ouvinte / leitor) uma confirmação ou infirmação face ao pressuposto implic(it)ado. Servindo para exprimir a dúvida, a perplexidade, a incerteza, a contingência, é no âmbito da atitude do locutor que tudo se coloca (em termos de lamento, reprovação, indignação, protesto, afastamento ou distanciamento), para além de se poder marcar uma (re)orientação face ao discurso já produzido.
    Enquanto mecanismo textual retórico-poético e/ou retórico-argumentativo, a interrogação retórica satisfaz a condição da pertinência que, no caso em estudo, permite introduzir um pressuposto: não é possível que alguém se admire com a situação constatada no primeiro e segundo parágrafos transcritos (a mercantilização dos artistas). O locutor reage criticamente, parecendo-lhe impossível que não se prefira atentar nos exemplos do parágrafo seguinte, mais consentâneo com a importância que o locutor dá à literatura para a formação de grandes homens e de regimes sociais coerentes (afinal, o que seria desejável a todos).
    Portanto, o enunciado "Estão admirados?" está matizado por uma modalização significativa que faz derivar aquilo que à partida era um ato de fala direto num indireto; o que era pergunta transforma-se em interrogação retórica, não com o objectivo de que o alocutário cumpra uma ação verbal ou não verbal, mas com o propósito argumentativo ou com a expressão avaliativa de um locutor relativamente a um certo estado de coisas. Tomo, assim, a presente interrogação (retórica) como a configuração de um ato ilocutório expressivo. É muito mais admirável o que Mandela e os homens do ANC fizeram na prisão do que certos "artistas" fazem (supostamente) em liberdade.

       Nesta linha de raciocínio, apetece-me terminar com Jorge de Sena: "Por que pergunto, se já sei porquê?" (in "Tendo lido uma carta acerca de um seu livro de poemas..." - Poesia I, 1977); ou então lembrando aquela pergunta de Padre António Vieira no final do primeiro parágrafo do Sermão de Santo António ("Não é isto verdade?"), para a qual já tinha resposta ("Ainda mal!"). Interrogações retóricas que estão mais para o contexto de produção ou de expressão do pensamento de quem as constrói (do que para a voz que lhes possa vir a dar resposta).

2 comentários:

  1. Maria José Santiago18 de maio de 2014 às 20:59

    Muito obrigada, Vítor, pela sua resposta tão elucidativa, pela fundamentação sempre tão lógica e exemplificativa, fazendo o difícil parecer fácil. A sua explicação ajudou-me a organizar melhor os meus raciocínios na destrinça dos atos ilocutórios, que, às vezes, me têm confundido. Ainda bem que a publicou, pois assim a partilha pode ser de ajuda para alguém com dúvida semelhante à minha, o que me faz sentir menos embaraçada perante o trabalho que teve.

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    1. Caríssima Maria José,

      Não há nenhuma razão para sentir embaraço. Foi contente por ter ajudado e, como diz e bem, pode ser que ajudemos outros que por aqui "viajem".
      De novo, grato pelas suas palavras e pela sua consideração.
      Até breve.

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