Em contexto de gripe, medicação, tosse, febre e voz roufenha, o tempo impôs-se-me, sem qualquer possibilidade de o controlar ou gerir. Rendo-me a ele, dando tempo ao tempo... e à leitura.
Foi então que concluí a leitura de Caim, de Saramago.
Imagens de Francisco de Holanda (pintor e humanista português)
Tempo para perguntar: que diabo de Homem é este que, para enaltecer uns, desconsidera e despreza outros? Não fora esta atitude, tudo seria tão diferente!
Jogando com o significado etimológico da palavra que dá nome à personagem principal (aquela a partir da qual se constrói o ponto de vista ou a focalização narrativa), Caim é uma obra que "lança" uma visão alternativa aos mitos, às histórias, à Bíblia. Uma reflexão sobre a condição e os limites divinos, sobre o Homem e a relação deste com o transcendente, bem como a visão que ele tem acerca da sua herança cultural e religiosa: entre a aceitação tácita e a interrogação instauradora do desafio de novas leituras, de novas perspetivas, de novas percepções.
Na linha de outros romances do autor, é a visão dos derrotados, dos submissos, dos oprimidos, dos preteridos que se impõe - a daquele que se assume como alternativa aos eleitos, ao dogma, ao discurso oficial.
O preterido de Deus consciencializa-se das alternativas criativas - "O lugar é o mesmo, mas o presente mudou" (Cap. 9 - pág. 115) -, na sua errância feita de muita questionação e problematização humanas. Daí que se leia, no capítulo 10, que "Caim não sabe onde se encontra, não percebe se o jumento o estará levando por uma das tantas vias do passado ou por algum estreito carreiro do futuro, ou se, simplesmente, vai andando por um qualquer outro presente que ainda não se deu a conhecer." (pág. 129). E quando reconhece que "Vi coisas que ainda não aconteceram" (pág. 134) ou que o "amanhã era agora" (ibidem), sublinha-se novamente o poder que o homem exerce sobre o mundo e a própria linguagem.
Renovado agradecimento à VS, por uma prenda polémica que apreciei ler e que, novamente, não me prendeu pelo mediatismo que lhe foi dado, mas pelo que se me deu a ver.
Mais uma obra de um autor que não escreve para agradar nem para desagradar: apenas para desassossegar, naquilo que tem de inconformismo face ao que nos querem fazer crer.
Então tem muito a ver com Cristo: tanto quanto me lembro, disse que não tinha vindo para reinar mas para dividir. Ainda não li - Caim.
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ResponderEliminarE o desassossego tem tudo a ver com o homem que questiona o 'statu quo' e coloca, ao serviço da humanidade, uma reflexão e um ideal feitos à base da força espiritual que, em cada um de nós, reconheça aquilo que mais nos irmana na nossa condição de existência e sobrevivência.