domingo, 12 de maio de 2013

Bela e perdida

      Uma vida intensa, de fuga(s), com inquietação e um "eu" a superar limites...

Florbela Espanca, por Botelho (2008)
     Terminou hoje uma série de três episódios que, nos três últimos domingos, deu a conhecer a vida e a obra de "Bela", ou melhor, Florbela Espanca (Flor Bela de Alma da Conceição Espanca). Entre Vila Viçosa (1894) e Matosinhos (1830), um só dia viu nascer a vida a que, na tristeza, a própria poetisa pôs fim aos 36 anos.
       Da sua obra poética (entre contos, poemas, um diário e registos epistolográficos), destacam-se duas antologias de sonetos publicadas em vida - Livro de Mágoas (1919) e Livro de Sóror Saudade (1923). Charneca em Flor (1931), Juvenília (1931) e Reliquiae (1934) são edições póstumas. Nelas se escuta uma voz voltada para o amor, sofrida, excessiva; se sente a expressão de uma emotividade, de um sentimentalismo traçados pela singularidade da ânsia, da tristeza; se contempla a visão da aguda solidão no seio da união, de uma saudade composta também de algumas notas de romantismo tardio, de decadentismo e de simbolismo, explorando o registo da desilusão e da desistência neuróticas. 


      Numa interpretação sugestiva, expressiva e muito bem conseguida de Dalila do Carmo, retrata-se uma Florbela perdida nas inquietações que a impelem para a(s) fuga(s); o gosto e o requinte estéticos que distraem, iludem, inebriam, fazem esquecer, tal como as festas e os ambientes animados do foxtrot; procurar um caminho que não a liberta do desencanto resultante de uma ânsia de absoluto e infinito por realizar. Daí o persistente lamento, a prenunciada instabilidade angustiante, numa existência confinada ao finito, dimensionada na teatralidade das emoções (mais vividas e sentidas do que imaginadas) e de uma sobrevivência constante e emocionalmente ameaçada.
      É desta poetisa uma definição de "Ser poeta" - poema incluído em Charneca em Flor e musicado pelo grupo Trovante (no álbum 'Terra Firme", de 1987) com o título "Perdidamente":


          SER POETA

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e cetim…
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente…
É seres alma e sangue e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!

     Alguns anos mais tarde, surge uma nova versão da composição, com a Ala dos Namorados e o acompanhamento de voz de Sara Tavares, no álbum de 2005: Solta-se o beijo (ao vivo).


       Aspiração de Infinito... concentração num só grito.

      "Que os vivos passem adiante" - assim termina a série sobre quem, aspirando a tudo o que a vida lhe pudesse dar, acabou por não a conseguir viver.

6 comentários:

  1. "Perdidamente" diz aquela que se perdeu, que nunca se encontrou ou que só o fez, por instantes, nas palavras, na alucinação (o filme também nos "mostra" esses devaneios, esses momentos breves de "irrealidade" de alucinação, de uma sombra de outra luz...).

    Deixo da "Bela Flor" aqui dois sonetos que tão bem a (in)definem em sombras e no sopro (leia-se espírito) das palavras.

    Quem?

    Não sei quem és. Já não te vejo bem...
    E ouço-me dizer (ai, tanta vez!...)
    Sonho que um outro sonho me desfez?
    Fantasma de que amor? Sombra de quem?

    Névoa? Quimera? Fumo? Donde vem?...
    - Não sei se tu, amor, assim me vês!...
    Nossos olhos não são nossos, talvez...
    Assim, tu não és tu! Não és ninguém!...

    És tudo e não és nada... És a desgraça...
    És quem nem sequer vejo; és um que passa...
    És sorriso de Deus que não mereço...

    És aquele que vive e que morreu...
    És aquele que é quase um outro eu...
    És aquele que nem sequer conheço...

    Florbela Espanca, in "A Mensageira das Violetas"

    O Meu Soneto

    Em atitudes e em ritmos fleumáticos,
    Erguendo as mãos em gestos recolhidos,
    Todos brocados fúlgidos, hieráticos,
    Em ti andam bailando os meus sentidos...

    E os meus olhos serenos, enigmáticos
    Meninos que na estrada andam perdidos,
    Dolorosos, tristíssimos, extáticos,
    São letras de poemas nunca lidos...

    As magnólias abertas dos meus dedos
    São mistérios, são filtros, são enredos
    Que pecados d´amor trazem de rastros...

    E a minha boca, a rútila manhã,
    Na Via Láctea, lírica, pagã,
    A rir desfolha as pétalas dos astros!..

    Florbela Espanca, in "A Mensageira das Violetas"


    E porque (parece que) esta perdição não se dá apenas pelo/no amor e com a Florbela, deixo também um poema de Manuel António Pina que veio ter comigo hoje, de manhã, na livraria Bertrand...
    É claro que comprei o livro! Mas ainda não descobri o que significa o título...


    Schlesiches tör

    É domingo ainda e chove ainda
    num vago jardim perdido.
    Fora de mim qualquer coisa em mim finda
    como em alguém desconhecido.

    Como se fosse domingo
    no desfeito sonho de alguém
    sonhando comigo,
    lembro-me (quem?)

    de outro jardim, de outro domingo,
    indistintamente existindo,
    como eu próprio, em mim.
    Agora em que jardim

    alheio e indiferente
    chove em mim para sempre?
    Também eu sou outro
    transportando um morto.

    in “Todas as Palavras”


    Tanto Pessoa... Tantas pessoas!

    beijinho e bom fim de semana!
    IA

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    1. Tu andas a ter encontros poéticos muito simbólicos, nas palavras e na(s) Pessoa(s).
      É assim que te vingas?!
      Bom fim de semana.
      Descansa.
      Beijinho.

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  2. Que pena não ter visto. Não soube. A nossa televisão, felizmente, no meio de tanta coisa de que pouca coisa fica, ainda vai tendo alguns programas bons.
    A Florbela Espanca faz-me sempre recuar até à minha juventude. Ela era um dos meus ídolos.
    Beijinho e bom domingo!
    M.

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    1. Amiguinha,

      Pela série não posso fazer muito.
      Com todo o gosto posso emprestar-te o filme. É mais curtinho, mas mostra muito do que foi a série.
      Beijinho.

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  3. Ora, muito boa noite, Dr. Vítor Oliveira e não só. Também a todos os visitantes curiosos, passageiros apressados, passageiros fugitivos, ou simplesmente furtivos...

    Pois cá estou eu para esclarecer o enigma que eu própria criei ao revelar o meu desconhecimento acerca do significado do título do poema de MAP.
    Houve alma caridosa que confirmou as minhas pesquisas na NET e posso afiançar que o título é alemão e é o nome de uma estação de comboio, em Berlim!
    Apropriado, não?
    Ou não fosse esta a nossa carruagem favorita(de um comboio bem conhecido rumo ao (des)conhecido!)!

    "Tör significa porta, entrada e "Schlesiches" é o nome de uma localidade. Por isso, aquela seria uma das entradas no burgo que era Berlim em tempos idos, lá pela Idade Média...

    E para que nada vos falte e compense o "suspense" criado fica aqui uma cantiga que, de certo modo, também se adequa!
    Ao poema. Claro! E também à viagem...

    http://www.youtube.com/watch?v=iTkB4XotYZY

    Beijinho
    IA

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