quarta-feira, 12 de novembro de 2025

São Martinho, com castanhas, sem vinho

       Não foi no dia (a 11 / 11), mas é como se fosse.

     Um dia depois, as castanhas de São Martinho chegaram-me generosamente à mão, em saquinho funcional e motivadamente decorado, bem como ao paladar, entre o faminto e o sedento.
      Nem dei conta do santo. Foi-me anunciado, é certo, mas, na azáfama do dia, ele não me valeu, com o seu manto de aconchego e conforto. Ainda assim, há quem não se esqueça de mim e me traga o "mimo" da tradição, lembrando o magusto.
       Fico-me pelo comer.

Um saquinho de castanhas que valeu pelo santo esquecido, na voragem do dia 
(Fotografia VO)

       Do vinho, nem vê-lo! É como o verão: nos dias outoniços de chuva e da depressão Cláudia recentemente chegada a Portugal, lá se vai o provérbio que ditava "Verão de São Martinho são três dias e mais um bocadinho." 

      Sim, ditava. Neste ano, nem um bocadinho, quanto mais três dias! Grato pelas castanhas que alimentaram a alma e, por momentos, fizeram esquecer as agruras do dia. (Com agradecimento à SF).

quinta-feira, 30 de outubro de 2025

One man show e seus companheiros

    Uma boa forma de terminar o dia: com um concerto no Super Bock Arena (ou o mais familiar Pavilhão Rosa Mota, que alguns ainda lembram como Palácio de Cristal). 

      O espetáculo (porque foi concerto e porque foi fantástico) foi um dos da celebração dos vinte anos de carreira de Miguel Araújo. Haverá um segundo em Lisboa, mas o do Porto é sempre o "da terra" do músico, já que é homem do Norte, bem mais perto da Finisterre (para lembrar a "Serenata do Norte").
    São vinte anos para muitas canções daquele que é hoje considerado um dos mais reconhecidos e notáveis compositores, guitarristas e intérpretes do panorama musical português. Também um comunicador nato, tanto no registo sério como no da ironia e da comédia, numa multifacetada interação com o público que reage e se compromete com o espetáculo (como, por exemplo, quando é convidado a dançar uns passos de valsa, em fila de cadeiras que nem uma volta permite). Não poderia ser de outra forma, pela qualidade e familiaridade demonstradas: é o cantor, é a banda, são as músicas (com letras partilhadas), é o cenário luminoso e colorido conjugado com os ritmos e as mensagens transmitidas,... É o espetáculo pleno de energia e força convocadas.
        
Três momentos do espetáculo que foi o concerto do Miguel Araújo (montagem fotográfica VO)

      Um balanço de vinte anos não se faz sozinho: subiram ao palco o filho; artistas e amigos de uma vida, como João Só, António Zambujo, Os Quatro e Meia, Rui Veloso, Os Azeitonas, os Kapa (e, entre todos, uns quantos médicos bem vozeados, como se houvesse necessidade de assistência ou acompanhamento do imenso público que vibrava com o repertório musical do artista, dos amigos, dos familiares, com alguma nota de Beatles e de Rolling Stones).
       Fica um breve apontamento vídeo de um concerto fora de série, num fim de outubro que fica para memória de quem experienciou o evento:

Apontamentos de um espetáculo enérgico, com música/músicos de grande qualidade

     Assisti, há uns anos, a um espetáculo transmitido na RTP1 que, pela sua diferença, me captou a atenção e me prendeu ao televisor. Estar no espetáculo, hoje, ao vivo, sem filtros, é um outro envolvimento contagiante, uma outra sinergia, regeneradora das forças que o cansaço de um dia de trabalho parece fazer esgotar. 

     Amanhã, por certo, ficará a sensação de não ter dormido tudo; porém, haverá reforçado motivo para lembrar a excecionalidade de um concerto bem português. (Com agradecimento ao MA, família e amigos - todos tão musicais!).

domingo, 26 de outubro de 2025

E depois da quarta...

       ... vem a quinta dimensão.

       Altura, largura, profundidade, tempo - quatro são. Qual é a quinta de que se fala?
      Talvez uma outra mais ou a fusão de todas. Alguma que permita ultrapassar as anteriores e vá bem além do que qualquer outra força permita (visibilizar). O conceito de dimensões adicionais aparece mencionado em diversas obras de Oscar Wilde, Marcel Proust e HG Wells; configura-se em Picasso e outros artistas modernistas, que representam dimensões alternativas, múltiplas, transcendentes.
     Eis que me surge um poema com esse título, na segunda parte de um livro intitulado Ousadias (2025), com poesia e fotografia, da autoria de Adriana Carmezim e Cristina Pinto
        Na estruturação da obra, depois de 'ousadias lua' vem o 'sol ousadias', com notas de cor e palavras de esperança:

A ousadia de pôr voz no escrito e de tornar visível um livro ousado (montagem VO)

    Adriana Carmezim traz regeneração, um solstício que deixa de ser inverniço e frio e passa artisticamente a um tempo diferente, salvífico, com ritmo poético expectante, confiante. Ecos de uma nova fase de vida, mais promissora, risonha, própria de quem vê luz, seja no fundo do túnel seja no caminho que passa a ser cumprido mais positivamente. O lunar dá lugar ao solar - ampliando-se o toque de luz.

         Lidos os versos silenciosamente, deu-se-lhes voz, como se o canto trouxesse às palavras escritas um efeito metamorfoseador, transfigurador. Recriador. Um outra dimensão: que permite acreditar em melhores tempos.

sábado, 25 de outubro de 2025

Nostalgias e Ousadias

       Hoje foi dia de (re)encontros, no Lugar de Desenho - Fundação Júlio Resende (Valbom).

    A convite da Adriana Carmezim e da Cristina Pinto, fui apresentar o relançamento do Nostalgias (outubro de 2001 - de 2025) e o nascimento público do Ousadias. Duas artistas, duas publicações, duas expressões artísticas (desenho / fotografia e escrita literária), num crescendo multiplicativo que preencheu o dia com sentido(s), sentimento(s), reflexão(ões), memória(s), vivência(s) a todo o tempo revitalizadores.

As obras da Adriana e da Cristina, no Lugar do Desenho (Valbom) - exemplos interartísticos

      O espaço é belo, as obras apresentadas também; e as pessoas são o melhor, quando o tempo é (re)vivido em sorrisos, partilha e (re)união.

A responsabilidade de apresentar duas obras é grande. Foi uma honra!
 (Foto facultada pela AC e CP)

      O meu contributo procurou trazer vivências tão contrastivas quanto complementares, referências sintonizadoras de expressão (inter)artística e cultural (literárias e não só), bem como a partilha, o testemunho, a parceria, a sintonia, a terapia, a difonia (duas pessoas com duas expressões artísticas capazes de se multiplicarem em comunhão e beleza), para harmonias, geografias e cosmogonias mais humanas e humanistas.
         Destas autoras fico à espera de outro '...ias' (e já sei qual é)!

      Lá fora chovia, mas o calor humano do momento aqueceu uma tarde outoniça a prenunciar inverno. Agradecimento à Adriana Carmezim e à Cristina Pinto pela aposta.

quarta-feira, 27 de agosto de 2025

De mal a pior

      De tanto se falar mal na saúde e da ministra...

      ... até a língua fica doente, com os maus usos que lhe dão.
      O último, captado em rodapé televisivo, é prova da chaga (dis)ortográfica que assoma a ira de qualquer leitor:

Algo vai mal e não é só na saúde. Ponha-se ordem sem ouvir ninguém. Basta ler! (Foto VO)

      Isto de confundir o verbo 'haver' com o 'ouvir', numa das formas mais homofónicas de ambos (houve / ouve) é erro que considero impensável. Resta a esperança de quem o cometeu nem sequer ter pensado antes de escrever.
     Por isso, relembro as sábias palavras de Bento Jesus Caraça (matemático, pedagogo, anti-fascista, nascido em 1901 e falecido em 1948):

"... se não receio o erro 
é porque estou sempre pronto a corrigi-lo."

       Cure-se o que ainda possa ter remédio. Creio que haverá tarefeiros na área da comunicação a necessitar também de regulação.

quarta-feira, 9 de julho de 2025

Mostra-me os teus Lusíadas - momento de (re)encontro(s)

      Um evento feito de duas palavras.

    Na verdade, houve muitas mais, mas o Sr. Comissário Nacional para a Comemoração dos 500 anos do nascimento de Camões marcou o seu discurso por duas: "Parabéns" e "Obrigado".
      O agradecimento começou quando, na abertura do evento, reparei na presença de várias gerações no Auditório Maria Ricardo - crianças pequenas, jovens, pais, educadoras, professores, avós -, todos em torno de uma atividade promovida pela Coordenação da Biblioteca do Agrupamento de Escolas Dr. Manuel Laranjeira (AEML), em articulação com o Departamento de Línguas e o grupo disciplinar de Português: "Mostra-me os teus Lusíadas" (perdoada, claro, a deturpação do título, a bem de uma oralidade mais fluida, natural, tornada escrita).
    Na senda das atividades  promovidas a propósito do ano quingentésimo do nascimento do épico português, o AEML fecha um ciclo, com a recolha de edições da epopeia quinhentista Os Lusíadas e o propósito de encontrar a mais antiga. Entre vários formatos e edições de diversas datas, não se chegou à original (de 1572); conseguiu-se recuar até ao ano 1870, com uma edição de bolso, não maior do que a palma da mão, surpreendentemente composta de finas e pequenas páginas onde cabiam 1102 estâncias (para 8816 versos) distribuídas por dez cantos. Caso para dizer que "Mostra-me os teus Lusíadas" quase precisava do complemento lupa para a devida leitura.

Bem andei com os meus Os Lusíadas à mostra, com muitas notas minhas (como aluno e professor), 
mas era apenas uma edição do século passado (1978). Havia vários exemplares datados do século XIX!

      O Auditório Maria Ricardo (inicialmente) e a Biblioteca da escola-sede do agrupamento (aquando da divulgação de prémios, generosamente patrocinados pela Porto Editora e pelo Grupo Solverde) foram os locais de (re)encontro, onde se acolheu uma exposição de livros e se recebeu o grupo de convidados e participantes, numa oportunidade para lembrar diferentes gerações de que, para lá dos planos da História de Portugal, da viagem marítima até à Índia e dos episódios mitológicos, há mais um (o quarto) com versos épicos camonianos a sublinhar a universalidade, intemporalidade e a contemporaneidade do pensamento do autor. 

     Biblioteca da EBSML, local da entrega de prémios e da exposição de edições de Os Lusíadas.

    Daí relembrar-se a reflexão final do Canto I, tão ajustada aos tempos modernos e à humilde constatação da fragilidade da condição humana perante a grandiosidade das forças que a dominam:

105 (...)
Oh! Grandes e gravíssimos perigos,
Oh! Caminho de vida nunca certo,
Que, aonde a gente põe sua esperança,
Tenha a vida tão pouca segurança!

106 
No mar tanta tormenta e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida!
Na terra, tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade avorrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?

     Daí evocar-se o Canto VII, naquele momento em que Paulo da Gama se prepara para explicar ao Catual o significado dos símbolos da bandeira nacional nas naus: surge o pedido de auxílio do poeta às ninfas (mais uma invocação, para que se cumpra grandioso relato), imediatamente seguido de um lamento por quem tem obra feita e não se vê reconhecido pelo que faz (seja pelo esforço desproporcionado para se fazer notar seja pelas invejas movidas contra quem trabalha):

78 
 (...)                           ... Mas, ó cego,
Eu, que cometo, insano e temerário,
Sem vós, Ninfas do Tejo e do Mondego,
Por caminho tão árduo, longo e vário!
Vosso favor invoco, que navego
Por alto mar, com vento tão contrário,
Que, se não me ajudais, hei grande medo
Que o meu fraco batel se alague cedo.

     No seio do sentido eufórico e grandioso da epopeia, não deixam de se ler notas críticas, disfóricas de uma época em extensão contínua, quase profética para a atual. No mar da vida, os ventos contrários surgem tão inesperados quanto certos, restando à humanidade remar "em fraco batel" contra marés adversas e provar a sua tenacidade, para a sobrevivência; para a luta por uma sociedade mais humanizad(or)a, justa, menos tomada por jogos de interesse, manipulações, maniqueísmos ou invejas.
     De tudo isto e muito mais trata Camões na sua epopeia, tão diversa, inspirada e experimentada (com "saber de experiência feito").
    Pelo exposto, o AEML mereceu os parabéns: pelas iniciativas levadas a cabo; pelos produtos conseguidos (mais icónicos, mais escritos, mais manuais, mais digitais, mais simbólicos); por ter feito da celebração ação, divulgando e reconhecendo obra; por saber que ainda muito há a partilhar do poeta universal português. Razões, portanto, para mais evocações e comemorações, com as lições intemporais colhidas dos textos, numa leitura atenta, focada num tempo que se (re)visita e, nalguns casos, parece manter-se pela pertinência e atualidade das questões, dos tópicos e dos problemas vividos, transeculares.
  Agradeceu-se, também, a presença amiga e já familiar do Sr. Comissário Nacional, o Professor José Augusto Cardoso Bernardes, ao dar maior dignidade - com o seu estímulo, a sua acessibilidade, douta simplicidade e afabilidade no saber e no trato - a um momento de reconhecimento do que se faz bem e em honra de quem deu a ler e a ouvir grandiosa epopeia ao mundo. 
   Gratidão ainda por se ter contado com a música e o canto de membros do Bando do Surunyo (com a voz encantadora de uma ex-aluna e a companhia harmoniosa, simpática e colaborante de uma instrumentista), que mais abrilhantaram a tarde deste dia, numa ambiência memorável, festiva, musical, poética - pelas palavras camonianas, pelas sonoridades criadas, pela animação vivenciada, pela presença de muitos e pelos gestos que engrandecem o ser humano (a partir do exemplo dos grandes, clássicos ou contemporâneos).

    Caminhe-se rumo ao seiscentésimo ano, evocando e reencontrando, a cada dia, mês, ano, a grandiosidade de quem simboliza a língua, a identidade nacional e o sentido universal de mensagem(ns) humanas e humanistas.

quarta-feira, 25 de junho de 2025

Nem com Shakespeare isto lá vai...

  O fundo escuro com o texto a branco fez-me lembrar a comédia Twelfth Night.


   Já que do dramaturgo quinhentista / seiscentista inglês se trata, evoque-se a máxima "There is no darkness but ignorance" (Ato IV, cena II), proferida pelo bobo Feste, reforçando a metáfora da ignorância como escuridão.
     Tudo a propósito de uma série documental que tem vindo a passar na RTP2, sobre a vida e obra de William Shakespeare, na perspetiva de muitos estudiosos, investigadores, atores, especialistas na obra produzida e encenada.
       Logo a abrir o programa televisivo, lê-se:

Genialidade só no autor / escritor. Quanto ao resto,... (Foto VO)

     No melhor pano, a nódoa. Gosto do programa, do tema, do autor, da obra, mas no que toca a ascender, fiquemo-nos pela ASCENSÃO (e não o que aparece grafado). Na escuridão da imagem, a ignorância ortográfica.
       Algum conhecimento etimológico faria luz ortográfica: "ascensus" do latim está para ascenso, tal como "ascensio, onis" está para ascensão. Na família de palavras, a aproximação (orto)gráfica é evidente.

     A verdade é que Shakespeare é um dos maiores da literatura. Ascendeu por certo. Evidentíssima ascensão.

terça-feira, 10 de junho de 2025

Tempos hodiernos, convocando grandes poetas

      Atos, discursos, história, cultura e mentalidades.

   Vê-se e ouve-se o que, incompreensivelmente, só alguns querem: em Lisboa, impede-se a realização de uma peça, com a agressão a um ator de forma fortuita e irracional; atacam-se barbaramente adeptos de um clube desportivo, após um jogo de hóquei em patins; em vários pontos do país, habitados pelos que nos procuram, verificam-se movimentações contra imigrantes; aumentam, cerca de 30%, denúncias de violência doméstica; cresce a criminalidade violenta provocada por organizações mafiosas; tornam-se mais do que evidentes manifestações progressivas de extremismos políticos e formas de populismo que comprometem a segurança e o equilíbrio social.
     A questão não é apenas nacional. Os exemplos multiplicam-se por países e continentes (na Europa, na América trumpiana, em África, no Oriente).
    Tanta desgraça de indignidade humana, tanto desconcerto do mundo quando mais se pede paz, ética, responsabilidade, segurança... a humanidade e o humanismo que nos fazem ser diferentes.
     No dia de hoje, celebrando-se um poeta, uma língua, a cultura da portugalidade, há todo um discurso que faz a diferença: a tradução de um espírito, de uma mensagem que ilumina o sorriso de muitos e o desconforto de alguns outros. 
    E, assim, se evocam grandes poetas, a sua universalidade e atualidade de pensamento, apesar da passagem e da evolução dos séculos:

"... é reconfortante saber que os professores deste país continuam a ler às crianças epigramas, redon-dilhas e vilancetes de Camões como se fossem filmes modernos feitos de palavras, o que mostra que os portugueses continuam vivamente enamorados do seu poeta maior.
    Mas se o patrono destas celebrações é o poeta do virtuosismo verbal e do amor conceptual, o amor maneirista, o poeta do questionamento filosófico e teológico como é em Sôbolos Rios que Vão, e o poeta dos longos versos enfáticos sobre o heroísmo dos viajantes do mar, ao regressarmos a todos esses versos escritos há quase quinhentos anos, encontramos coincidências que nos ajudam a compreender os tempos duros que atravessamos, tão em conformidade com os tempos em que ele próprio viveu.
    Camões, tal como nós, conheceu uma época de transição, assistiu ao fim de um ciclo, e sobre a consciência dessa mudança, no conjunto das mil cento e duas oitavas que compõem Os Lusíadas, vinte e duas delas contêm avisos explícitos sobre a crise que se vivia então. Aliás, hoje é ponto assente que o poema épico encerra um paradoxo enquanto género. O paradoxo de constituir um elogio sem limites à coragem de um povo que havia resultado na criação de um Império e, em sentido oposto, conter a condenação das práticas que passados cinquenta anos impediam a manutenção desse mesmo império. E nesse campo, pode-se dizer que Os Lusíadas, poema que no fundo justifica que o Dia de Portugal seja o Dia de Camões, expressa corajosas verdades, dirigidas ao rosto dos poderes que elogia.
    É bom lembrar que entre os séculos XVI e XVII três dos maiores escritores europeus de sempre coincidiram no tempo apenas durante dezasseis anos, e no entanto os três desenvolveram obras notáveis de resposta ao momento de viragem de que eram testemunhas. Foram eles Shakespeare, Cervantes e Camões. De modo diferente, mas em convergência, procederam à anatomia dos dilemas humanos, e entre eles os mecanismos universais do poder, corpus que continua válido e intacto até aos nossos dias. Sobre o poder grandioso, o poder cruel, o poder tirânico, e o poder temeroso e o poder laxista.
   No caso de Camões, de que se queixa ele quando interrompe o poema das maravilhas da História para lembrar a mesquinha realidade que envenenava o presente de então? Queixava-se da degradação moral. Mencionava "o vil interesse e sede immiga/ do dinheiro, que a tudo nos obriga", e evocava entre os vários aspectos da degradação o facto de sucederem aos homens da coragem que tinham enfrentado o mar desconhecido, homens novos, venais, que só pensavam em fazer fortuna. Mais do que isso, queixava-se da subversão do pensamento. Queixava-se da falta de seriedade intelectual que resultava, depois, na prática, na degradação dos actos do dia a dia. Escreve o poeta no final do Canto VIII – "Este deprava às vezes as ciências, /Os juízos cegando e as consciências (…) Este interpreta mais do que sutilmente/Os textos; este faz e desfaz leis; / Este causa os perjúrios entre a gente/E mil vezes tiranos torna os Reis…"
    Na verdade, Camões, Cervantes e Shakespeare, de modos diferentes, expuseram os meandros da dominação, envolvidos com o tempo histórico dos impérios em que viveram. Por essa altura, sobre os reis de Portugal, Espanha e Inglaterra, dizia-se que lutavam entre si pelo domínio do Globo Terrestre. Ou, mais concretamente, dizia-se então que os três competiam para ver quem acabaria por pendurar a Terra ao pescoço como se fosse um berloque. Os três autores perceberam bem que em dado momento é possível que figuras enlouquecidas, emergidas do campo da psicopatologia, assaltem o poder e subvertam todas as regras da boa convivência. Escreveu Shakespeare no acto IV do Rei Lear: "É uma infelicidade da época que os loucos guiem os cegos."
    Enquanto isso, Cervantes criava a figura genial do alucinado Dom Quixote de la Mancha, que até hoje perdura entre nós como o nosso irmão ensandecido. Por seu lado, Camões, no corpo de Os Lusíadas não falou da loucura, mas a vida haveria de lhe demonstrar que as páginas escritas por si mesmo haviam sido proféticas em resultado dela, a insanidade. O desastre de Alcácer Quibir, ocorrido em 1578, estava assinalado numa das últimas estrofes do canto X. Era a História, como sempre, a confirmar o pressentimento experimentado pela Literatura. No entanto, o fim de ciclo que neste caso aqui interessa não é mais uma transição localizada que diga apenas respeito a três reinos da Europa. Nos dias que correm, trata-se do surgimento de um novo tempo que está a acontecer à escala global.
   Porque nós, agora, somos outros, deslocamo-nos à velocidade dos meteoros, e estamos cercados de fios invisíveis que nos ligam pelo Espaço. Mas alguma coisa desse outro fim de ciclo que se seguiu ao tempo da Renascença malograda relaciona-se com os dias que estamos a viver. O poder demente, aliado ao triunfalismo tecnológico, faz que a cada manhã, ao irmos ao encontro das notícias da noite, sintamos como a Terra redonda é disputada por vários pescoços em competição, como se mais uma vez se tratasse de um berloque. E os cidadãos? São público que assiste a espectáculos em écrans de bolso. Por alguma razão os cidadãos hoje regrediram à subtil designação de seguidores e os seus ídolos são fantasmas. É contra isso, e por isso, que vale a pena que Portugal e as Comunidades Portuguesas usem o nome de um poeta por patrono. (...)
    Consta que em pleno século XVII, dez por cento da população portuguesa teria origem africana. Essa população não nos tinha invadido, os portugueses os tinham trazido arrastados. E nos miscigenámos. O que significa que por aqui ninguém tem sangue puro, a falácia da ascendência única não tem correspondência com a realidade. Cada um de nós é uma soma. Tem sangue do nativo e de migrante, do europeu e do africano, do branco e do negro e de todas as outras cores humanas. Somos descendentes do escravo e do senhor que o escravizava, filhos do pirata e do que foi roubado. Mistura daquele que punia até à morte e do misericordioso que lhe limpava as feridas.
    A consciência dessa aventura antropológica talvez mitigue a fúria revisionista que nos assalta pelos extremos, nos dias de hoje, um pouco por toda a parte, agora que percebemos que estamos no fim de um ciclo e que um outro se está a desenhar, e a incógnita existencial sobre o futuro próximo, ainda desconhecido, nos interpela a cada manhã que acordamos sem sabermos como irá ser o dia seguinte. A pergunta é esta – Quando ficarem em causa os fundamentos institucionais, científicos, éticos, políticos, e os pilares de relação de inteligência homem/máquina entrarem num novo paradigma, que lugar ocuparemos nós como seres humanos? O que passará a ser um ser humano? (...)
     Comecei por dizer que Camões nasceu e nunca mais morreu.
    Hoje, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, não será legítimo perguntar, sem querer ofender quem quer que seja, perguntar como manteremos a noção de ser humano respeitável, livre, digno, merecedor de ter acesso à verdade dos factos e à expressão da sua liberdade de consciência?"

     Lídia Jorge, aquando da celebração do 10 de junho (Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas) deste ano, disse o que muitos querem ouvir; outros relativizam ou renegam. Enquanto estes últimos crescentemente se reveem no que a maioria não quer esquecer, os primeiros aceitam uma inevitabilidade histórica e uma razão forte para colher e viver mundo(s), aceitar a miscigenação cultural, integrar os que (re)encontram em Portugal oportunidade(s) para descobrir ou responder à questão "Onde pode acolher-se um fraco humano / Onde terá segura a curta vida, / Que não se arme, e se indigne o Céu sereno / Contra um bicho da terra tão pequeno?”

    A reflexão de Camões, no final do canto I de Os Lusíadas (1572), é interrogação intemporal, buscando um sentido de vida humano, humanista, focado na segurança, na humildade, nessa pequenez e fragilidade ansiosas de uma felicidade que só o pensamento (crítico), a consciência e a espiritualidade (podem) trazer.

domingo, 8 de junho de 2025

Eruditismos... (credo!)

    ..., já que não se trata de erudição!

    Perdoe-me o leitor por iniciar este apontamento (quase escrevia 'post') com um termo que, não estando dicionarizado, é o que me apetece escrever de momento, para reagir negativamente a algo que uma amiga me endereçou e para me referir à pretensa erudição de alguém que se encontrava a apresentar um livro, junto de um público tão sorridente, seleto e entusiasmado.
     O orador lembrou(-se) de tanta coisa interessante! Contudo, esqueceu-se de distinguir duas palavras bem diferentes na língua: folhear e desfolhar.

Como diria o abade Remédios, "não havia necessidade" 
(vídeo partilhado pela AC, com o devido agradecimento)

     Diz o senhor apresentador que "desfolhava" (por duas vezes, uma delas ainda que involuntária) o livro. E, assim, só por milagre não o destruiu! Isto de tirar ou arrancar as folhas dos livros, das revistas ou dos jornais não está com nada, muito menos quando, pelos vistos, se cruzam tantas comparações de qualidade (no âmbito da arquitetura, história, música, culinária). Já a imagem de marca da apresentação não tem salvação possível.
     Foi, portanto, um momento em ato de incultura linguística / lexical, no mínimo.

Siga-se a dica esclarecedora, com imagem, para se aprender melhor.

    Fico na expectativa de que a Livraria Lello não tenha uma baixa significativa no seu acervo bibliográfico, caso haja mais apresentações destas, com livros desfolhados. Protejam-nos! São um bem precioso, pelo saber que transmitem. Ninguém os deve desfolhar. 

   Folheemos os livros. Não há palimpsestos que resistam, nem intertextos ou intratextos, se persistirmos em os desfolhar.

sábado, 31 de maio de 2025

Pediram-me para ler...

       ... e não me fiz rogado.

     Aquando da apresentação de VINTE SONETOS e outros poemas, de Manuel Maria, no Auditório da Biblioteca Municipal de Gondomar, durante a tarde de hoje, li dois dos textos poéticos compilados na obra. Tinham-me pedido um, mas, como ando um insubordinado e insubmisso, decidi abusar e dobrei a parada.
     Contrariei, inclusive, a ordem do título, iniciando pelo único dístico presente na secção (segunda) intitulada "outros poemas". Enquanto leitor de Sophia, relembrei o facto de os poemas mais curtos da nossa poeta apresentarem uma profundidade de pensamento evidente, uma sabedoria que nos toca com as palavras mais singelas - lições de vida traduzidas em cerca de dois a quatro versos. Fica, portanto, provado que a escolha não teve nada a ver com preguiça minha, mas com um capital de leitura que, de uma forma ou outra, se vai cruzando com outras oportunidades trazidas pelo próprio ato de ler.
      Também disso o Manuel Maria é capaz, pelo que, ao folhear o livro, na página 33, encontrei o texto
 
Vídeo e áudio do poema "Há tantas coisas tristes...", de Manuel Maria (maio 2025)

     A seleção reflete, por um lado, a tónica de um sentimento emergente de um mundo que nos vai deixando sinais fortes dos perigos e das ameaças que, longe ou perto, nos colocam em aviso constante e na razão da crescente consciência de que nenhuma guerra dignifica o ser humano; por outro lado, assume uma estratégia, na qual o fingimento recobre uma forma de sobrevivência, enquanto ingrediente necessário à vida e ao ato criativo, fictivo, poético, recuperando Pessoa e a génese criadora de quem "chega a fingir que é dor / a dor que deveras sente" (como se lê em "Autopsicografia"). A nota de negatividade presente ao longo dos catorze versos decassilábicos, não pela forma, mas pelo conteúdo, é típica de um Manuel Laranjeira, que me persegue (n)a vida e que, na polaridade negativa, não deixa de a representar como húmus a alimentar e a valorizar o seu contrário, num caminho de idealização a fazer, a perseguir, a cumprir.
      Por extensão, e numa relação intratextual com a obra hoje dada a ler (desta feita com a parte correspondente aos "Vinte Sonetos"), reencontro novas e coincidentes dissonâncias, em versos a espelhar um sujeito poético atormentado, revoltado, caraterizado por uma disforia exógena a dominá-lo endogenamente (pág. 27):

Poema "Ingratidão" de Manuel Maria (vídeo e áudio por Vítor Oliveira)

      Eis as palavras, os versos de um sujeito poético que o Manuel Maria compôs à imagem e semelhança de um estado de espírito que vive instantes, que tem momentos feitos de opostos complementares, que busca identidades e que encontra palavras num exercício de escrita dominador: ao mesmo tempo "(a minha) cruz" e também "a luz". Na dualidade da dor rimada com amor, resulta uma tensão declarada na expressão poética, visível também ora na forma perfeita e convencionada do soneto italianizante ora na liberdade versificatória moderna (ambas usadas na publicação hoje publicitada), orientadas para Amor - Tempo - Arte. 

Obra poética de Manuel Maria, dedicada "A todos os que, na leitura e na escrita, se sentem com alma de poeta".

    Estas são as linhas com que, acronimicamente, o sujeito poético (também o poeta,... também o Manel) se ATA(m): na multiconfiguração e plurivalência do Amor; na inexorável, mas profícua passagem do Tempo; na exploração e na entrega à Arte (da palavra alada).

      De novo, relembrando Sophia e "Epidauro 62", ecoam versos: "Oiço a voz subir os últimos degraus / Oiço a palavra alada impessoal / Que reconheço por não ser já minha". A apresentação feita por Ana Maria Cardoso e a estratégia feliz da leitura a várias vozes amigas resultaram, sobretudo, em "partilha poética", em leituras e interpretações de muitos, conduzidas por esse fio de Ariadne a permitir o (re)encontro com a escrita e a leitura, num coro pintado de vozes, tons e cores a matizar uma co-autoria polifónica a diferentes tempos.

quinta-feira, 8 de maio de 2025

Pedro Lamares na Laranjeira

       Chegou o momento de o rever: um ex-aluno da escola.

      O reencontro aconteceu graças à iniciativa do grupo disciplinar de Português, que preparou, junto com a Coordenadora da Biblioteca do Agrupamento e o Departamento de Línguas, uma sessão para o programa que constituiu a celebração da Semana da Língua Portuguesa (onde se inclui o dia 5 de maio, o Dia Mundial da Língua Portuguesa).

Reencontros num "Passei por aqui" que honra o AEML (com Pedro Lamares)

     Um ex-aluno da Escola Secundária Dr. Manuel Laranjeira deu-se a conhecer aos que hoje frequentam o agrupamento, numa interação que se pautou pela abordagem de vários tópicos: a formação, as opções académicas e profissionais, o posicionamento político, o gosto pela poesia, a apresentação de programas televisivos, entre outros.
        Nascido em Portimão, Pedro Lamares cedo mudou para a Granja, tendo estudado em Espinho. Cruzou-se com as artes plásticas, a escola de jazz do Porto (1996/97), o curso de preparação para licenciatura em música sacra, até que chegou ao teatro (com formações em vários pontos do mundo). Conta, no seu currículo, a participação no Filme do Desassossego, de João Botelho (2010), onde assumiu o papel de Fernando Pessoa. Em 2015, é convidado para apresentar o programa televisivo Literatura Agora (RTP2), onde "diz" (e não declama) poesia.

Interação de Pedro Lamares com o público que assistiu ao (re)encontro

    Foram praticamente duas horas e meia de uma conversa próxima, à qual assistiram alunos e professores, brindados com a simpatia de quem partilhou o gosto pela leitura (nesse encontro feliz do leitor com os textos, pela janela do sentido e não pelos formalismos de análise tecnicista), a natureza expressiva do discurso teatral e das experiências de leitura poética (mais ou menos marcadas por escolas e por diferentes modos de oralizar os textos), o elogio da aposta na formação com base nos cursos das literaturas e humanidades. No princípio de tudo, uma visão e uma posição face ao mundo, apostadas no exercício de uma cidadania comprometida com os valores que dignificam a pessoa. Em suma, uma lição para miúdos e graúdos, na qual a experiência de vida se cruza com o sentido artístico e político das causas comuns.
     Não terminou o encontro sem que fosse dada a conhecer uma poetisa a descobrir: Filipa Leal (jornalista, escritora, poetisa portuense). Leu o poema "Manual de Despedida para Mulheres Sensíveis", um exemplo literário para os rituais da temática da partida, seus motivos (imigração) e efeitos (autocontrolo), junto das que muito a sentem.
     
Espaço de cidade, espaço de mundo para o ser humano do século XXI 
(poema de Filipa Leal dito por Pedro Lamares)

       Realidade tão atual em texto tão contemporâneo: "É tanto o que se pede a um ser humano no século XXI!" 

        Manual de despedida para mulheres sensíveis 

Ser digna na partida, na despedida, dizer adeus com jeito, 
não chorar para não enfraquecer o emigrante, 
mesmo que o emigrante seja o nosso irmão mais novo, 
dobrar-lhe as camisas, limpar-lhe as sapatilhas 
com um pano húmido, ajudá-lo a pesar a mala 
que não pode levar mais de vinte quilos 
(quanto pesará o coração dele? e o meu?), 
três pares de sapatos, um jogo de lençóis, o corta-vento, 
oferecer-lhe a medalha que a Mãe usava sempre que partia 
e que talvez não tenha usado quando partiu para sempre, 
ter passado o dia à procura da medalha pela casa toda 
(ninguém sai mais daqui sem a medalha, ninguém sai mais daqui), 
pensar que a data escolhida para partir é a da morte da Mãe, 
pensar que a Mãe não está comigo para lhe dobrar as camisas 
e mesmo assim não chorar, nunca chorar, 
mesmo que o Pai esteja a chorar, mesmo que estejam todos a chorar, 
tomar umas merdas, se for preciso: uns calmantes, uns relaxantes, 
uns antioxidantes para não chorar; andar a pé para não chorar, 
apanhar sol para não chorar, jantar fora para não chorar, conhecer gente, 
mas gente animada, pintar o cabelo e esconder as brancas, 
que os grisalhos são mais chorões, dizer graças para não pôr também
os amigos a chorar, os amigos gostam é de nós a rir, ver séries cómicas 
até cair, acordar mais cedo para lhe fazer torradas antes da viagem, 
com manteiga, com doce de mirtilo, com tudo o que houver no frigorífico, 
e não pensar que nunca mais seremos pequenos outra vez, 
cheios de Mãe e de Pai no quarto ao lado, 
cheios de emprego no quarto ao lado quando ainda existia Portugal. 

É tanto o que se pede a um ser humano do século vinte e um. 
Que morra de medo e de saudade no aeroporto Francisco Sá Carneiro. 
Mas que não chore. 
                                                  
                                                   in Vem à Quinta-feira (2016: 48)

        E, no fim de tudo, despediu-se com o sorriso e a empatia que o caracterizam. Sem chorar.

    Mais uma figura de relevo nacional passou pelo agrupamento (ontem e hoje) e deixou o seu testemunho a quem o acompanhou.

quarta-feira, 30 de abril de 2025

Literatura a antecipar a realidade

   Quando há dois dias, pelo final da manhã, se viveu o apagão em Portugal e na Espanha, lembrei-me de um livro.

    O incidente foi anunciado como "cyber attack", sinal de guerra, conspiração, falha de satélite, quebra de energia (prolongada) que não deixou de gerar pânico, preocupação, surpresa, consciência de que estamos muito mal habituados nessa garantia de que tudo temos e a todo o tempo nos vemos desarranjados na vida.
   A estabilidade da rede elétrica nacional foi vivida como incerta, e há quem afirme que a Inteligência Artificial (IA) já prenuncia novas ocorrências nos próximos anos. Um verdadeiro pandemónio (depois da pandemia que nos atrofiou)!
    Leitor atento diria que não precisa das "tecnologias sapientes" que tantos idolatram. Não há razão para espanto, quando, já em 1986, Saramago tinha escrito na sua Jangada de Pedra o seguinte (terceira divisão narrativa, na edição de 1986, páginas 37-38):

Excerto do romance do Nobel português, prenunciador do "apagón" peninsular

     O que aconteceu a 28 de abril do ano corrente teve repercussões ibéricas transversais, deixando a península à deriva e com impactos significativos em vários setores (nas casas, nas escolas, nos hospitais, nas empresas, no país, na península). Comunicações, proximidades e imediatismos ficaram comprometidos - certezas, dados adquiridos que deixaram de o ser e revelaram como nos tornamos frágeis e instáveis de um momento para o outro.
     Não se separou a península do resto da Europa, como na obra do Nobel português (por isso, não se pode afirmar que se tenha feito jangada), mas parecia termos recuado a um tempo (parecia ser o da pedra) feito de nada, com tudo à mão, mas por funcionar.
     Qual personagem romanesca, num fim de dia em que chegava a casa sem energia nem luz, revi-me numa passagem ilustrativa de alguns gestos e instantes já vividos, lidos e relembrados:
 
Mais um excerto do romance saramaguiano, prenunciador do "negrum" e da retoma da normalidade

     Quase quarenta anos depois, a página de um livro deixou de ser ficção. Qualquer semelhança com a realidade não foi pura coincidência nem puro exercício de imaginação. Durou mais do que quinze minutos e foi em abril (que dizem ter águas mil e ficou sem luz)! Não espanta que, como epígrafe do romance saramaguiano e citando Alejo Carpentier, se possa ler e dizer "Todo futuro es fabuloso".

segunda-feira, 14 de abril de 2025

Para que conste do que sou capaz

      Nunca um pensamento foi tão coincidente com a realidade.

      Foi o que me deu para concluir quando li a imagem que me fizeram chegar:

Se fosse tudo uma questão de capacidade...! (imagem colhida do Facebook)

      Fico-me entre o cómico (não sei se pelo inesperado se pelo despropósito) e o dramático (não sou só eu a pensar assim; até mais novos). 
   Ainda falta algum tempo no meu caso (isto se não for muito, caso decidam alterar a idade de "ingresso" para mais tarde).

       Quando comecei a minha vida profissional, a expectativa de então era a de já estar aposentado. Agora fico sentado... a trabalhar e à espera.

segunda-feira, 7 de abril de 2025

Sem santos nem milagres na língua

    Não podia ser de outra forma, quando se repete o erro.

  Que dizer daquele algoritmo que vai comandando a nossa vida, ao clicar-se num produto / assunto / tema / apontamento, e tem um "agente inteligente" que não vê a ignorância perpetuada num convite que só pode ter uma resposta?!

Até pode ser o bom Portugal, mas, no que toca ao Português, vai muito mal (colhido do Facebook)

Além do país, adore-se também a língua, para que não seja incorretamente usada (colhido do Facebook)

Nem com Santo António isto lá vai! Não há santo que valha ao bom uso da língua (colhido do Facebook)

   Claro que não me sentaria - eis a resposta!
  Sentar-me-ia se houvesse a consciência de como fazer um convite corretamente. Não adianta  a referência a terras, a santos; a apresentação de carinhas larocas e comidinhas apetecíveis, de chorar por mais. Nada disso me convence. Está em causa o mau uso do português, que, no condicional ou no futuro, é mal falado ou escrito até por ministros.

E não é que insistem?! Mudam as caras e as iguarias, mas mantém-se o erro crasso (colhido do Facebook)

  O condicional pronominalizado tem, tipicamente, o pronome entre a base verbal e a sua terminação. "Sentar-te-ias" devia ser a forma a ler; não aquela que a inteligência artificial (AI) e um algoritmo infeliz não descobriram, ainda, para usar corretamente na fala e/ou na escrita. 

Nossa Senhora de Fátima nos acuda, nos salve da persistência declarada no erro (colhido do Facebook)

  Caso para dizer que não há ruralidade nem iguaria que resistam. 
  Futuro e condicional pronominalizados são deveras casos críticos da língua
  Nem com a AI isto vai lá!

    Triste daqueles que não veem nalguns registos da inteligência artificial, sublinhe-se, a artificialidade que só o espírito humano pode melhorar / corrigir / fazer vingar como virtuosa.

sábado, 5 de abril de 2025

Partilha do não desejado

      Há textos que não deviam ser escritos.

     Este é um deles. Eu, pelo menos, gostaria de não o ter feito, se tal significasse que não havia motivo para tal.
      Teve que ser lido:

O texto que ninguém quer escrever nem ler - https://carruagem23.blogspot.com/2025/04/partilha-do-nao-desejado.html 
(Foto VO)

     É sempre um momento de aperto no coração, de embargo na voz e que, na memória do vivido, traz a consciência de um tempo que prossegue sem a presença desejada, mas com o sinal do que o professor David Rodrigues define como "a grande provedora do tempo": a gratidão devida.
      É esta a vida (na qual subsiste a morte).

     Assim foi na Igreja Matriz de Espinho. À MCM. RIP. 

quarta-feira, 2 de abril de 2025

Variantes doces de provérbios

     Não consumindo açúcar, mas recriando provérbios.

     Do princípio ao fim do dia, vou colecionando pacotes de açúcar, à conta do número de cafés tomados. 
     Ultimamente, chegam às mãos (e aos olhos) provérbios que vou completando à medida da variação que o café inspira:
      
Pacotes de açúcar muito proverbiais com motivos sabendo a café (Foto VO)

      Não são os enunciados paremiológicos clássicos, é certo, mas a tradição também já não é o que era; logo, com rima ou sem rima, recriem-se os mesmos a partir do que a experiência de vida dita.

      No que toca à minha experiência, é menos açucarada; é mais cafeinada (já que não sou adepto do descafeinado).

sábado, 22 de março de 2025

Onze anos depois

     Regresso a Cabanas de Viriato e ao palacete, hoje museu, de Aristides Sousa Mendes.

   Já muito escrevi acerca de uma das personalidades mais relevantes da História de Portugal do século XX, internacionalmente reconhecida como um "Justo entre as Nações", mas que ainda muitos teimam ver apagada, na permanência de uma condição que a jornalista Diana Andringa apelidou de "O Cônsul Injustiçado".
   Volto ao tema, pela visita hoje levada a cabo à casa que vi já bem degradada e, presentemente, se dá a ver restaurada, acolhendo o Museu Aristides de Sousa Mendes. Não fossem os sinais interiores (denunciadores da injustiça, da perseguição, da miséria para que foi conduzido), dir-se-ia que, pelo exterior, um libertador do sofrimento e da desgraça está mais do que enaltecido. Não será nunca o caso.
    Guiados por um familiar seu, foram cerca de quarenta participantes a partilhar uma oportunidade de aproximação / identificação com uma causa que devia ser a de todos os homens: generosidade e grandeza de alma ao serviço do salvamento de povos ostracizados, conduzidos, por uns loucos despóticos do tempo, para um fim indigno.

Contrastes que o tempo produziu (montagem fotos VO)

   Muito trabalho foi já desenvolvido para um conhecimento mais efetivo do que representou, no seu tempo, este diplomata português, cujo desejo acabou por ser o de "ficar do lado de Deus contra os homens, em vez de ficar com os homens contra Deus". Num espírito de desobediência consciente, enfrentou e desafiou ordens expressas do ditador António de Oliveira Salazar (contrariando a famigerada Circular 14) e, durante três dias e três noites, concedeu milhares de vistos de entrada em Portugal, para refugiados de várias nacionalidades interessados em fugir de França e de outros países europeus (invadida pelo regime nazi). 
  Pagou caro por isso, e tal é comprovado de várias formas - uma delas, talvez a mais leve, por ter entregado um sobretudo (recentemente readquirido pela fundação para o museu) como forma de pagamento de uma despesa feita para poder alimentar a família.

Uma das salas do museu (primeiro andar) homenageando o Cônsul de Bordéus

   Num mundo que vivia e se digladiava com fortes armas, dizimando seres, Aristides Sousa Mendes empunhou um carimbo, para salvar milhares.

   Perante o vivido no museu e o restauro evidenciado no palacete, falta o passo de divulgação, de requalificação e de revalorização nacional merecidas de um dos seus maiores no período da Segunda Guerra Mundial; alguém que se interrogou sobre a vivência de um tempo tomado de desumanidade e loucura: "que mundo é este em que é preciso ser louco para fazer o que é certo?" Lembrá-lo será sempre pouco para o bem que fez.

domingo, 16 de março de 2025

200 anos de Camilo

     Não é estranha condição humana; é certeza de todos.

    Por barroco que seja o tópico da morte predita a partir do nascimento e da vida (como o sugere a rima do setecentista Francisco de Pina e Melo intitulada "A um berço com feitio de uma tumba"), o tema hoje é o nascimento de um oitocentista, um romântico, ainda que ilustrado com fotos da morte.
    Celebra-se o bicentenário do nascimento de Camilo Castelo Branco, esse escritor que, na intensidade da polémica, do sentimento e da escrita, levou ao limite e ao extremo a decisão do fim.
    Cumprido o desejo da sepultura no cemitério da Lapa, conforme testamentado numa das suas cartas a um amigo (João Freitas Fortuna, que detinha uma tipografia, onde algumas das obras camilianas foram impressas), a evidência dessa intenção satisfeita permanece ao olhar de todos, entre seis gavetões de sepulturas alinhadas num jazigo de família (que não a sua na vida, mas a escolhida na morte):

Um gavetão no cemitério mais romântico nacional tem os restos mortais de Camilo, 
junto de três outros suicidas (Foto VO)

     Em 15 de julho de 1889, na busca da cura para a cegueira, numa das muitas cartas que escritas pela mão de Ana Plácido a Freitas Fortuna, Camilo assume essa vontade:

    «Começo a experimentar uma espécie de affecto posthumo ao meu cadáver. Tão pouco me apreciei na vida, tão pouco cabedal fis da minha saúde, que já agora me quer parecer que este amor ao que nada vale é retribuição devida a esta matéria que me hade sobreviver alguns annos, aviventada pela engrenagem da putrefacção. Deste desejo extraordinario mas não excepcional, resultou dizer-lhe eu, meu querido amigo, quer fallando quer escrevendo, que aspirava fervorosamente ser sepultado no seu jazigo da Lapa. …. vontade que me domina há ano e meio… O meu querido Freitas acceitou com ternura fraternal a offerta do meu cadáver, e d’esta arte, permittindo que eu fizesse parte da sua família extincta, quis continuar alem da vida a tarefa sacratíssima da sua dedicação incomparável.»

      No dia seguinte à morte do autor de Amor de Perdição (1862), a 2 de junho de 1890, o Governador Civil de Braga autoriza que o cadáver seja transportado de S. Miguel de Seide para a Igreja da Lapa, no Porto. Aqui se encontra sepultado no cemitério privativo da Venerável Irmandade, no jazigo de família desse dedicado amigo, a quem por escrito recomendou «que nenhuma força ou consideração o demova de conservar-lhe as cinzas perpectuamente na sua Capella».

      Sirva este apontamento para falar da vida, celebrada, na arte, num cemitério, tomado como museu a céu aberto. Dê-se a prova de como não há Panteão, por merecido que seja, para acolher quem nele não quis permanecer.

sábado, 15 de março de 2025

Fim de 'A Obra ao Negro'

    Aquele momento em que terminas um romance que te acompanhou anos.

   Foram quase dez. Diria que foi um arrastar de tempo para a leitura quanto o foi para a génese do romance (a bem da verdade nem tanto, já que este ocupou mais de trinta anos de escrita - entre 1934 e 1968 -, segundo a autora).
    Por isso, entre as várias reflexões lidas, a que mais me chamou a atenção, pela oportunidade e pela identidade, foi aquela do protagonista Zenão, no final do seu percurso, a assumir, perante o seu mestre, que

  "O homem é uma empresa que tem contra si o tempo, a necessidade, a sorte, a imbecil e sempre crescente primazia do número (...) Os homens hão de matar o homem."

   Nunca nada tão pertinente e coincidente com os tempos hodiernos, apesar de a réplica ser de personagem antiga, feita de traços que, em muito, relembram o pensamento de Erasmo de Roterdão, Leonardo Da Vinci, Paracelso, Copérnico, Giordano Bruno - homens perseguidos que marcaram a Humanidade e que, desde o final da Idade Média até ao Renascimento, sublinharam um sentido de liberdade, de saber e de espírito crítico que só alguns outros, livres, isentos e descomprometidos do poder ou do lugar que ocupam, poderiam compreender.
    Num imaginário de ideal humanista, Zenão, um clérigo tornado filósofo, médico e alquimista, partilha muito do seu conhecimento num percurso de vida errante, com as suas atividades científicas, as suas publicações, bem como o seu espírito crítico a desafiarem o poder da Igreja. Sob nome falso, desenvolve o que o preconceito, o ocultismo e os poderes legitimados do tempo não permitiram. Nas conquistas que faz e no reconhecimento que tem, perde a possibilidade de prosseguir, por efeito colateral de um escândalo, a ponto de ser preso, julgado pela Inquisição e condenado à fogueira.
     Nas três partes da obra romanesca (A vida errante; A vida imóvel; A prisão), Marguerite Yourcenar constrói Zenão (Sebastião Théus) como homem curioso, inteligente; ser que procura, mas não pode apresentar a verdade que domina entre os seus contemporâneos; filósofo que assume a liberdade (se esta existir, quando alguém se encontra natural ou contextualmente condicionado) de decidir o momento e o local do fim (enquanto porta a abrir-se para a inconsciência, afastada dessa consciência marcada por ostracismos, injustiças e perseguições). 

     Segundo tratados alquímicos, A Obra ao Negro é expressão para a fase de separação e dissolução, que era, diz-se, a parte mais difícil da Grande Obra. Com o romance, resulta em título para também indiciar experiências audaciosas, encaradas por muitos como excessivas sobre a própria matéria, as provações do espírito quando o propósito é o de livrar o mundo de rotinas estéreis, de ideias feitas e repetidamente inúteis, com o intuito de se alcançar o bem comum.