segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Entre as novidades do Vaticano e as lembranças em Roma

      No dia em que se anuncia alguma mudança (será?) no pensamento do Papa, lembrei-me da minha passagem pelo Vaticano (e de como tive de esquecer que a Igreja é para os humildes, pobres e necessitados).

     Cerca de dois meses depois do meu regresso, lá por finais de Outubro, uma amiga dava-me a conhecer como uma das suas leituras se cruzava com as impressões do meu relato sobre os dias vividos em Roma.
     Aqui segue o excerto, por ela facultado (o que lhe agradeço) e da autoria de Possidónio Cachapa, no livro intitulado Rio da Glória (Oficina do Livro - 2006):


     "Já viram um turista de sandálias e ar deslumbrado, a percorrer Roma a pé? A extasiar-se com o Capitólio, a estremecer de compaixão diante do Coliseu, enquanto se desvia de uma horda bárbara de japoneses? Então, para quê contar esses primeiros dias de Mário? Para quê falar da forma como ele entrou em quantas igrejas pôde? Não para rezar, porque as sentia desertadas da presença de Deus, que só imaginava nos desertos ou voando sobre as águas, mas para se comover diante da beleza dos santos barrocos, das portas lacadas a madrepérola, onde o seu rosto sem atributos se espelhava melhorado. Sim, até à praça Navona ele foi… A olhar, curioso, grupos de austríacos que comiam gelados de chocolate ou pannacotta, um fotógrafo que pedia ao assistente que movesse a perna da modelo para mais perto do estômago, como se ela fosse um porco morto ou um cacho de peras sobre uma jarra tombada. Uma mulher velha, um chapéu de agência turística na cabeça, descansava na beira da fonte, enquanto o neto, de costas, marcava as gajas, com os pés imersos na água que parecia azul-clara. As estátuas de Bernini revolviam-se imóveis, melancólicas de representar o mesmo papel até que o tempo as levasse. Pombos cinzentos sujavam de excrementos o rosa estriado dos mármores. Tudo lhe interessava e o entusiasmava, não só por pertença, mas também por isso. Ser e não ser do tempo que lhe calhava. Estar e não estar com os que pisavam as pedras como meio de entretenimento. Sentado na piazza, na tarde morna, Mário estava a li e não estava; se estendesse as mãos, poderia ou não agarrar a beira de uma fonte ou roçar o corpo apressado de um estudante em férias.
    Gostou sobretudo da cor dos prédios, tão diferente dos brancos ou da decadência dos azulejos modernos a que se tinha habituado. Relaxava-se nos ocres, nos laranjas, em cores que vinham da terra. Davam-lhe segurança, como se não fosse preciso ir a mais lado nenhum. Calculou que fosse por isso que os guias de viagem insistissem em chamar à cidade “eterna”. Ir onde, se o passado se mantinha agarrado a nós como lapa?
      Nos anos que se seguiram, Mário visitou muitas vezes a cidade vizinha do estado que o acolhia, sem nunca se cansar dela. Pensava nas multidões que a cobriam como inundações periódicas, que aconteciam ao longo dos séculos e que recuavam, deixando sedimentos que alimentavam e alegravam a vida dos restantes seres. Talvez tenha sido isso o que o impediu de partir mais cedo."

FOTOS: 
cimo: Monte Capitólio (Campidoglio) ou Capitolino, uma das famosas sete colinas de Roma; 
segunda: Coliseu de Roma;
terceira: Piazza Navona, o salão de visitas de Roma;
fundo: Interior da Basílica de S. Pedro (Roma), altar central da autoria de Bernini.

      Hoje, três meses depois, o Vaticano (por razões distintas) regressa aos meus ouvidos e à minha memória.
  
     De facto, qualquer visitante de Roma e do Vaticano identifica-se com o que foi lido... de como nos sentimos parte de uma história, das raízes de uma cultura e de uma civilização de que somos uma pequena peça. Está ali a nossa herança, o peso do tempo a que pertencemos (passado e presente), o muito que somos (culturamente) na pequenez (física) que sentimos.

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