sábado, 23 de abril de 2011

Cuidado com as distâncias...

      Já tive oportunidade de, por várias vezes, me referir à natureza deíctica de certos termos.

      As questões persistem, porque em tudo dependem dos contextos discursivamente equacionados.

    Q: O advérbio «longe» é também um elemento deíctico, por exemplo, na frase «Tenho passado dias aflitivos longe de ti»? A mim, parece-me que não, porque acho que esse advérbio se refere sobretudo à distância que separa o locutor do interlocutor e não ao lugar em que aquele se encontra, mas nunca se sabe.

A porta, o espaço e o tempo,
arte digital surrealista de Marcel Caram
    R: A resposta, em função da frase, é mesmo assim variável, tendo em conta a circunstância de produção do discurso e as condições de interacção.
     Admitindo o cenário de alguém que escreve uma carta e introduz a frase em questão no discurso para constatação das dificuldades criadas com uma separação, é possível ler 'longe' como deíctico: por implicitação e por contraste face ao 'cá / aqui' do locutor (escrevente), distingue-se o 'longe' como marca vectorialmente orientada para o 'aí', como coordenada referente a um espaço distanciado, mediado e não compresente em que o interlocutor (configurado pelo pronome 'ti') se encontra.
     Uma outra situação diz respeito ao reencontro de duas pessoas que interagem compresencialmente. O locutor pode formular o enunciado para o seu interlocutor, no tempo e no espaço que partilham (estes últimos de natureza deíctica). Num presente, num 'aqui' e num 'agora' em que se confessa a aflição vivida num intervalo de tempo mais ou menos lato (cf. pretérito perfeito composto), pode acontecer que se faça referência a um outro lugar (no qual o interlocutor já não se encontra), traduzido pela locução prepositiva 'longe de'. Com esta última encenação, não ocorre um sinal de 'mostração' da construção do discurso; trata-se apenas de um indicador espacial de referência não específica, sem relação directa com a produção discursiva ou as coordenadas do 'eu' e/ou do 'tu'.

    Razão para se ter de explicitar o contexto o mais possível, por uma questão de distinção de coordenadas de localização na produção discursiva (deícticas) e coordenadas de referência (não necessariamente deícticas).

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