sexta-feira, 14 de junho de 2013

Preparando a viagem

      O destino é Moimenta da Beira, ali pelos lados onde Aquilino Ribeiro andou.

     As Terras do Demo - ou não fossem elas as terras de vida "dura, pobre, castigada pelo meio natural, sobrecarregada pelo fisco mercê de antigos e inconsiderados erros e abusos, porque em poucas terras como esta é sensível o fadário da existência." (in prefácio de Aquilino Ribeiro ao livro do Pe. Manuel da Gama, Terras do Alto Paiva, 1940).
Capa de uma edição datada de 1963, contendo o excerto 
transcrito nas páginas 150-151
      Basta ler o livro homónimo (dos finais da primeira década do século XX - 1919) e o sensacionismo descritivo do escritor para perceber um pouco a designação da terra, ocupada de "gente que comia calhaus e ladrava como os cães":

    "Emborcado sobre o mundo, o céu reluzia como uma redoma. Desvendavam-se hortas e quintais. Pelos oiteiros, os vagalhões de sombras corriam que nem reses bravas. Ainda a estrela da manhã pestanejava, mas trémula e apagadiça como pálpebra de menino com sono. Para banda das Antas, havia um estendedoiro de vermelho, a tal "cabra esfolada" de que rezavam os antigos, a prenunciar o bom tempo. As matas, às traseiras das lájeas, lembravam uma parede negra, a suster a noite para a banda de lá. Mas com endireitas do vale, os olhos já iam mais longe pelo espaço que o galope dum bom garrano. Enxergava-se, em baixo, o pano caiado da igreja, e, reparando bem, o macanjo do galo lá no coruto da torre, de crista para o nascente, à espera de salvar ao Sol como um galo verdadeiro. Cantava já para os soutos a melra, que é uma pássara que pega a cantar logo ao depois do rouxinol. Dali a pedaço o cuco, as rolas, a popa e a milheira cantariam, cantariam todos diante da rosa do sol melhor que os senhores padres o tantum ergo. Pouco a pouco a terra descobria-se e seu descobrir tinha um não sei quê de parecenças com a mulher que se despe para se dar. Talvez pelo que nas várzeas e no corpo da mulher há de ôndulas, ganham em luz e guardam de mistério, porque uma e outra foram feitas pelo Pai do Céu para a grande comédia da sujeição. Já luziam os caminhos, traçados no saibro pelo rilhar dos carros, e as paredes ruças à força de ver morrer gentes e dias."


      Pela mão de Mestre Aquilino, revisitarei o percurso do alto Douro, entrarei na alta Beira. E já que a viagem tem pouso na Nossa Senhora da Lapa, farei como os romeiros que despedem caminho fora versos de popularidade e provincianismo, tal como Aquilino nos relembra:

       Adeus, Siora da Lapa
       Adeus, té o ano que vem;
       Façai vós o que vos pido
       E cá vos trarei meu bem!

     Escritor estilista, com uma linguagem entre o vernacular e a erudição, colorida com a oralidade popular dos diálogos beirãos e expressões entre o grotesco e o satírico, há na produção romanesca aquiliana uma versatilidade que compagina o que há de mais tradicional na narrativa com a inovação que todo o século XX iria trazer.

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