Entre alguns dos casos críticos do Acordo Ortográfico (AO), este é, sem dúvida, um dos mais polémicos.
Confrontados com frases do tipo...
i) Para para ouvir.
ii) Para para ter atenção como deves ler.
iii) Para escrever para já não precisas de acento.
iv) Para escrever para instituições oficiais para de escrever para com acento.
v) Para o carro, já!
vi) Para para um acento dava jeito para distinguir palavras tão diferentes.
... lidamos com uma das palavras mais camaleónicas da língua portuguesa, na sua variedade do português europeu: entre a conjunção (subordinativa final), a preposição, mais a que o AO veio acrescentar (forma verbal), ao prescindir de acento agudo (ou, noutros casos, do circunflexo) nas homógrafas de palavras proclíticas.
A complexidade no processamento de leitura é evidente.
Sem auxílio de terceiros, sem a lembrança da voz, precisam as palavras de estar bem arrumadas na frase e na linearidade do pensamento do leitor. A sintaxe impõe-se forçosamente como sustentáculo mais imediato na descodificação do escrito. A distribuição, a linearidade dos enunciados não é suficiente, por certo; mas, convenhamos, mesmo para os leitores mais experientes, o recuo e o avanço percetivos vão ter de se cumprir, numa movimentação constante, a todo o momento exigindo avaliação com o que esteja aquém e além de outras palavras (confronte-se iv e vi) e/ou do enunciado no seu todo (v).
Adotando a antiga grafia, a oscilação entre 'Pára (,) para ouvir' e 'Para pára (,) ouvir (bem o modo como leio o a)' surge, particularmente em contextos de escrita que relativizem o uso da vírgula, por exemplo (dificultando a representação fónica de pausas silenciosas facilitadoras da descodificação). O mesmo sucede em (ii) 'Pára (,) para ter atenção como deves ler' e 'Para pára (,) ter atenção como deves ler', não obstante a estranheza da última construção - ainda assim possível na economia de um aviso, uma advertência, um conselho (formulado com infinitivo) acerca do que é necessário para se ler bem. A frase (iii) admite duas leituras: 'Para escrever (,) para já (,) não precisas de acento' ou 'Para escrever pára (,) já não precisas de acento'. E (v) só tem a ambiguidade desfeita num contexto em que a funcionalidade imperativa não é por si mesma distintiva: só um contexto e uma avaliação muito alargada das condições de leitura permitirão diferenciar 'Pára o carro, já!' de '(Vai) Para o carro, já!'
Se há contextos em que a facultatividade do acento gráfico é aceitável; se há situações em que é discutível e/ou frequentemente mal lida uma palavra, os exemplos aqui abordados tornam aguda toda e qualquer ocorrência de ensino-aprendizagem associada à leitura e à escrita.
Admitindo que atentar na sintaxe é focar na própria capacidade de pensar ou de se entender a forma como se pensa, creio que estamos perante um caso crítico do AO, inclusivamente no que a leitura e o escrito têm de reflexo quanto à forma de pensar.
Aproveitando o facto de hoje ser o dia em que se celebra o Halloween, fica a máxima do "Trick or treat?": entre a travessura da ortografia e o trato, a combinação, o compromisso desejados na leitura.
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